31.12.06

Medo de a bancada desbancar.

20.12.06

Esboços de uma estação passada (vol. último)

Pronto. Agora é só botar minha vida na mala e voltar pra Bauru.

Um babaca de nariz adunco - que conheço de vista mas não sei o nome - me interpelou hoje, aí pelas 11 horas da madrugada. Primeiro tirou um sarrinho do tamanho de minhas barbas, com uma daquelas piadinhas medíocres.

[SEMI-SONETO TOSCO, SEM MÉTRICA NEM RIMA PORQUE PÓS-MODERNO]

Todos os linques estão quebrados
Todos os imeios retornam ao servidor
Todos os saites foram invadidos
Todos os computadores acordaram com bug

Todos os bológues estão desatualizados
Todas as romipeiges foram desativadas
Todas as figuras não carregaram
Todos os arquivos atachados trouxeram vírus

Todos os messenes se perderam no ciberespaço
Todos os modens queimaram com a tempestade
Todos os contatos foram deletados

Todos os arquivos FTP viraram pó virtual
Todos os favoritos simplesmente sumiram
Toda a internet foi brincar de rede de dormir.

Pra não dizer que não falei dos ursinhos inocentes e sem vida que resplandecem nos quartos das meninas bonitas:
Muda-planta pra cidade-muda onde me mudo
Na cidade onde ninguém sabe falar eu também me calei.

Linhas recheadas de línguas
Tec-tec-tec-tec-tec. Teclando. Entre bits e bytes minha língua míngua ou ainda deságua porque a língua não se acaba?
O guarda-língua assustou-se quando descobriu que a língua é uma grande metamorfose. Mas a língua, espevitada e linguaruda que só ela, não se fez de rogada: deu uma de Emília, mostrou-lhe a língua e virou as costas.
Tec-tec-tec-tec-tec. High-tech. Século XXI d. C. Depois do Computador? Não, ainda não. Apenas, depois de Cristo. E o mundo já nos veio pronto, estruturado, organizado linearmente como se nem coubesse um hipertexto nem pedacinho de poesia.
O guarda-língua ficou tão sem graça que decidiu fugir rapidamente para o meio da guerra. Dizem as más-línguas, todas vermelhas e grandes, que ele fica lá deitado o dia todinho, esperando que alguma bomba colorida acerte sua cabeça e exploda sua língua junto. Enquanto isso, deixa a barba crescer em pensamento.
Tec-tec-tec-tec-tec. Trec. Se o computador quebrou, não tem mais tec-tec, mas ainda há toda a piração que nunca se sabe se é ins ou trans. Porque é urgentemente preciso des-ser o que sempre fomos e sub-ir aonde sempre fomos.
O guarda-língua, casmurro, taciturno e sorumbático, irritou-se com a lenga-lenga da guerra. Entre fogo cruzado, pisou na pedra mais alta e pontiaguda e desatou a gritar.
- A história da língua é tão longa quanto a língua da girafa. Ninguém chega num acordo, mas não vale a pena brigar, já que as espadas seriam línguas afiadas.
A língua é apenas um rótulo de maionese que colamos para poder viajar nas coisas? Puro convencionalismo que nos ajuda a perceber o mundo tal e qual ele nos parece? Ou a língua nasce do mundo de maneira natural e assim suas palavras estão diretamente relacionadas ao seu significado?
No fundo o importante é cheirar os frutos e comer as flores. Inverter e subverter os paradigmas. Trabalhar nus. Depois todos caímos na mais profunda modorra, pensando sabermos a verdade e curtindo a estranha mentira de nos acharmos felizes. Talvez o importante mesmo da língua sejam os beijos.
(Alheio ao processo lingüístico, um garotinho ficou espantado ao ver o tamanho da língua de boi dependurada no açougue. Com o impacto, mordeu a língua.)

Hoje não tem poema
Porque eu não consegui fazer o soneto que queria.

Uma carta doutros tempos
[achada entre meus arquivos de computador, uma carta que foi escrita há quase três anos]

Taquarituba, maio de 2001.

Século XIX. Dois anos depois de Auguste Comte ter afirmado categoricamente que jamais o ser humano conheceria a composição das estrelas – e isso era um conceito que iria provocar para sempre a existência da humanidade –, Gustav Kirchhoff inventou o espectroscópio, assassinando a idéia do seu contemporâneo. Logo depois, o jovem Albert Einstein divertia-se na escola Politécnica suíça, imaginando um dia viajar atrelado a um raio de luz.
São meras coisas. Fatos banais talvez de um dia que não nos chega ou já nos passou. Que importa? Marcas do que se foi e do que nunca será... Queria ser estrela para morrer e me tornar gigante vermelha, agonizante, depois morrer mesmo de verdade, anã vermelha, anã branca, anã negra, buraco negro, um buraco na parede, corpos selvagens...
Século XXI. Você me pergunta o que tenho feito. O que faço? Penso, logo existo; existo, logo penso. Isso não é resposta que se espere de um cara da minha idade com a nescilidade que me é característica primária. Quem sou? O que faço?
Faço poemas, mentiras, retratos, estranhos esboços. Pinto um quadro que não é surreal nem traça os sonhos do mundo. Às vezes, dormindo, ouço o repicar dos sinos da igreja e penso no racionamento de energia. Às vezes, dormindo, finjo que estou acordado para ver para crer para se ver, para te ter no fundo em meus braços num longo abraço de não mais saber.
Você já olhou para a lua com os olhos que lacrimejam paixão? Já encarou a face estreita que parece conter São Jorge e sua prosopopéia dragão – o dragão carrega em seus ombros o peso dos desvarios de toda a idade da raça humana.
Devo estar chato hoje. Mas pensei em te escrever justamente depois de ler que “o inferno são os outros”. Só Drummond acreditava, em meio a um oceano de filósofos pessimistas, que a convivência é boa, é proveitosa, é divertida – qual era mesmo a palavra que ele usava, sábio? não me lembro, não sei, minha cabeça está à toa...
Devo estar chato hoje. Desculpe-me; juro que não tinha a intenção de te aborrecer tampouco de ser inconveniente. Apenas queria desabafar, e o papel tem aceitado essas coisas medíocres que escrevo na vastidão incólume do giramundo vastomundo raimundo imundo (se o mundo fosse raimundo seria uma rima não uma explicação).
Devo estar chato hoje. Renitente, sem saúde, não estou tributável. Tinha vontade de comprar conhecimento na lojinha de 1,99, mas lá não são vendidos livros. Que pena, amor, que pena. E pensar que a saudade é diretamente proporcional ao avesso da simetria que nos prende e nos confunde... E pensar que somos tão jovens... E pensar que sequer pensamos direito.
Devo estar chato hoje. Esse meu discurso não servirá para nada. Será mais uma carta que passará por suas mãos e será arremessada pela janela – defenestrada – ou, pior, encestada na lixeirinha do banheiro.
Devo estar chato hoje. Deve ser a saudade, o clima gélido... o cheiro do seu perfume que imagino em minhas narinas como se você estivesse ao meu lado agora... Mas você não está... Por que será?
Beijos do perturbado chato.

Idiota mesmo sou eu que fui reinstalar minha impressora e, por falta de atenção, acabei deixando-a em alemão. Então que sou supreendido por mensagens deste tipo:
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Vocês não têm idéia de como isso me deixa feliz.

Trechos
de umas coisas que ando escrevendo

1) Mas para que ninguém saia por aí pedindo o dinheiro de volta, dizendo que “como assim o protagonista morrer bem no comecinho?”, eu vou mostrar as duas linhas que eu escrevi antes de morrer:

Decidi que não quero ser felizinho.
Agora vai ser oito ou oitenta: só brinco se for feliz ou triste.

2)
– Que cabeça você quer?
– A mais bonitona e cheia de recheio por favor!
– Serve Ezra Pound?
– Não sei... Preferia algo nacional... Tem Clarah Averbuck?
– Tem mas acabou. Por que você não leva Leminski?
Tudo. Tudo. Menos o tem mas acabou. Odeio o tem mas acabou.

3) Tinha cinco dedos em cada uma das mãos. Não era, portanto, presidente. Falava inglês, alemão e não-sei-mais-o-quês. Amava cinco namoradas, sendo fiel a todas elas. Era doutor em embromations factus e ganhava 15 mil dólares por mês. Andava sempre num carro importado, que não sei a marca porque não entendo de carros. Bebia só uísque escocês e ria dos pobres para quem jogava esmolinhas com desdém.
Um dia, tropeçou no ego e morreu de traumatismo craniano.

4)
- Manhê! Manhê! Manheeeeeeeeeeeeeeeeeeê!
...
- Mãe!?

O mundo anda bem doidão. Parece que fumou uns três quilos de maconha e agora bateu uma larica desgraçada nele. Então começou a devorar pessoas, umas com quéti-chupe, outras com queijo ralado. As mais rechonchudas, in natura mesmo.

Você já experimentou conectar dois caleidoscópios, um diferente de outro, um em cada olho, ao mesmo tempo? Experimente: talvez seja o melhor jeito de se lembrar de esquecer que o mundo não está mais valendo a pena.

Antes que alguém me pergunte: Não, o inferno ainda não voltou a funcionar!
Eu? Sou só um cara sensível tentando compreender a dureza do mundo.
Não, não estou bem. Acho que estou pirando. Sábado sem graça e, agora, prenúncio de um domingo indigesto.
Não sei o que vou fazer. Mas alguma coisa grande pode acontecer.
Vou-me embora da Terra dos Emboras?

Embora o Governo não saiba contar direito até dez e nos obrigue a manter o equilíbrio na ponta dos pés, o Brasil vai caminhando; embora a Televisão mo-dele a pública opinião e padronize até mesmo o nosso coração, há nichos de resistência criando novas formas artísticas; embora nossa escola venda um saber sem sabor que nos atola e nos restrinja a um universo sem verso nem de esmola, cresce o número de interessados por uma educação de nível superior; embora a nossa seleção de futebol ande capengando no cenário mundial e jogando mediocremente faça chuva ou faça sol, o povo não perdeu o amor pelo esporte; embora não haja uma política de incentivo suficiente para um ativo processo de revitalização do que outrora foi cenário de gláuberes e as blockbusters pasteurizadas por americanismos sejam abundantes, o nosso cinema está renascendo.
Embora não tenha cumprido sequer as promessas do vento da campanha, o presidente ousa prometer que vai fazer muito mais do que promete. E a fo-me? Zero é a nota que sacode no prato vazio do faminto que, embora tenha confiado seu voto ao ex-metalúrgico, ainda não viu realizado seu sonho do pão-nosso-de-cada-dia. Embora a realidade para ele seja triste, amanhece ca-da dia com força para trabalhar em busca de sua utopia.
Embora o frio esteja chegando bravo este ano, os sonhos continuam quentinhos dentro do peito de cada um; embora ao passarinho custe migrar porque grandes são as distâncias, sabe que no final de sua trajetória um porto seguro encontrará nos braços de sua amada; embora a dor e a saudade sejam incomensuráveis e cutuquem o amargo âmago feito piercing que não se perce-be, reside na alma o consolo de novo reencontro e tantos e tantos e tantos e quantos forem e houver.
Embora todo adágio pelo uso seja gasto e não passe de lugar-comum e a língua tenha se tornado cada vez mais comum com o baixo nível de entropia cultural alçado pelo povo, é preciso dizer que quem canta seus males apronta, que antes só do que mau no mercado, que em terra de cego quem tem um olho é gay, que quem com ferro fere com ferro será fedido, que se conselho fosse bom eu te vendava e ventava porque quem semeia vento colhe solidão.
Embora haja tantas ironias no seu dia-a-dia e tanta desilusão na sua noi-te-a-noite, note, o brasileiro não perde a esperança.

Bom dia, sol!
(Mas a janela vai ficar fechada porque eu não quero te ver não!)

Vazio como meu dia.
Vem uma dor aqui. Triste.
Talvez.
E o sol nascendo é tão bonito, tão diferente da tristeza que toma conta de mim, que às vezes tenho medo de preferi-lo ao poente, de inverter assim minha vida como se não houvesse.
O que que tem atrás da porta?

Sentado em um sorriso indefeso, ponho-me a observar as pessoas que não sabem voar. Elas são tapadas e não me vêem aqui do alto, enquanto eu procuro minha escova de dentes para continuar defendendo meu sorriso.

Eu ando com raiva da chuva.
Eu vou fugir.

Eu fico aqui torcendo pro meu ventilador, 24 horas por dia trabalhando, não pifar. Senão, como irei terminar de criar as infinitas vidas?

15.12.06

Eterno retorno

Nada criativa, a história se repete.
Lula chora ao ser diplomado e vai rir por outros quatro anos.
Nós assistimos. E teremos quatro anos para continuar com os prantos.

A única diferença é a sujeira acumulada no currículo do presidente.

13.12.06

Tudo o que sobra é o espaço entre nós
Tudo o que falta é abraço

12.12.06

Desconto de Natal

Durante o ano todo, ele se comportou direitinho. Seguiu todos os dez mandamentos, inventou outros três, respeitou mais alguns. Nem era cristão, mas achou melhor não brincar com essas coisas. Também deu provas de cidadania: jogou o lixo no lixo, não andou na contramão, não fumou no elevador, ajudou as velhinhas decrépitas a atravessarem a rua e, principalmente, não sonegou o imposto de renda. Ah, o imposto de renda.

Seu bom comportamento valeu até no futebol com os amigos - não foi desleal em nenhum lance e resistiu a quebrar os tornozelos do atacante adversário mesmo quando este sobraria cara-a-cara com o gol, goleiro já vendido - e no de verdade, quando no estádio não xingou a mãe do bandeirinha corrupto e nem pediu a cabeça do técnico do seu time, mesmo perdendo de 4.

Tratava os funcionários de sua fábrica de brinquedos a pão-de-ló, como se diz. Ganhavam bem, comparando-se à concorrência, recebiam décimo-terceiro, décimo-quarto e décimo-quinto salário, tinham tíquete-refeição, vale-transporte, cesta-básica, o escambau. Em casa, era um marido exemplar: cobria a mulher de afagos e mimos, nunca falhava na cama.

Pensou que por ter sido um bom menino mereceria um belo presente debaixo da árvore. Quase esqueceu que era ele o Papai Noel.

7.12.06

Esboços de uma estação passada (vol. 5)

"Os pássaros voam porque não têm ideologia"
(Millôr Fernandes)

Tudo o que eu queria agora era fazer um grande poema de amor
mas não acho poema pra tanto amor!
Eu ia falar uma grande besteira, só o naco de sensatez que ainda me existe pede pra deixar pra lá.

Resto de madrugada. Eu sem grana, procurando um novo buraco pra me esconder da chuva.
Descubro-me misântropo de última hora.
É sempre assim quando a noite começa e nada termina é sempre assim esse gosto de sem gosto agosto na boca e a secura de não te ter ao meu lado nas noites tristes é sempre assim mesmo porque não há salvação fora daqui nem dentro daqui não há salvação em lugar nenhum é tudo ilusão e toda ilusão é passageira porque isso eu aprendi desde pequenininho.

Pra falar a verdade eu nunca havia pensado nesse negócio de que todas as meninas amam as estrelas
Agora estou até com medo
Medo
de perder um ou outro dedo na conta insaciável dos astros do céu
seu céu
meu céu
céu

Pra falar a verdade eu nunca havia pensando que pensar demais podia doer um pouco
agora começo a bater cabeça
cabeça
cheia de idéias novas e sonhos velhos comprados no supermercado
próximos da data
do vencimento
Vem, cimento: concreta tudo o que se desfazia no ar!

Vi um relógio escorrendo de um galho e pensei que estava perdido dentro de um quadro de Dalí. Mal sabia eu, pálido ignorante, que aquilo era um pé de tempo e o que escorria era um fruto apodrecido porque não colhido no tempo certo.
Decidi mudar-me para um quadro do Escher. Ao menos seria mais divertido escorregar na perspectiva.

A mentira da forma como ela acontece:
- Legal né?
- O que?
- Tudo!
- É...

Descobrimento do Brasil: A terra, ninguém prometeu, ninguém cumpriu. Caminho entre pedras e vejo surgir cidades cheias de gente feliz e cores verdes, amarelas, azuis. Olho pra dentro das casas, pelas janelas que me sorriem, e o que são lá dentro senão faces me vendo alegres com as cabeças cheias de pensamentos de algodão-doce...
No país do meu sonho, todas as construções se esfacelam no ar. E dá pra sentir no vento tudo o que as pessoas sentem. Sabe quando a gente pega a casca de laranja e espreme, sai aquele sumo que nem um vaporzinho brilhando contra o sol? Assim, assim. Dá pra perceber o sentimento das pessoas como se fosse sumo de laranja.
Piso o chão. Mas piso bem de leve, para que ele não grite, não reclame, não doa. E vez em quando saio pra colher estrelas, enquanto a lua fica observando todos nós. As estrelas têm o jeito estranho de serem todas serelepes, enquanto a lua é rainha onipotente, clarão clareando tudo, esclarecendo o ser, esclarecendo a vida com sua magia de ser.
Aqui não tem pobreza, não tem fome. Não tem ignorância, não tem analfabetismo. Os livros pululam livres das estantes, e o que era antes senão somente instantes de sabedoria?
Meu país ainda vai ser descoberto.

Decidi que não quero ser felizinho.
Agora vai ser oito ou oitenta: só brinco se for feliz ou triste.

Considerações

Para errar com estilo, é preciso aprender, é preciso saber. Nada de estuprar a sorte ou convencer a fortuna. Para errar com estilo, é preciso soerguer as sobrancelhas e evitar qualquer golpe que vier a ser desferido.

6.12.06

Esboços de uma estação passada (vol. 4)

Vou chamar a polícia e o ladrão.
Minha mãe também virá.

Dormi hora e meia. No meu sonho tinha um revólver verde e quase enferrujado com o qual eu matava todas as pessoas chatas.
Matei-me.

Taquarituba, 21 de julho de 2003.
Pensando em toda a maluquice desta pós-modernidade na qual vivemos, sabendo-a efêmera e triste, embora recheada de pontos de felicidade - provocados por compostos físicos e/ou químicos.
Pensando se não é mais fácil jogar tudo pra cima e desistir. Certo de que é mais fácil, decido continuar: sempre optei pelos caminhos mais difíceis.
Pensando na imensa delícia de ser o que é. Pensando em pensar só mais um pouquinho. Apenas pensando.
Como será o próximo semestre que por aí vem? é sempre esse gosto de ansiedade e esse sabor de sorvete de laranja na boca. Alguém já tomou sorvete de laranja? Por que?
Estranho, né? Mas já dizia Shakespeare: "Há mais razões entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia".
Só. Acabou o papel.

fico aqui pensando e me lembro que você já me matou.
quando acordei vi meu corpo estirado junto ao seu. um pouco de sangue misturado ao resto de vinho. ambos mortos. primeiro eu, com um punhal no coração. depois você, com um suicídio na cabeça.
o amor tem dessas coisas.

Não adianta nada, não adianta nada.
No fim ninguém vai mesmo sair vivo desta história, desta histeria, este game-show sem graça no qual estamos imersos. Eu e você + todo mundo. É, minha nega, você também vai morrer!

Vou escrever compulsivamente, o que significa ficar horas, dias, semanas quiçá, a fio, teclando e bebendo, bebendo e teclando. Poemas, cartas de amor, problemas, crônicas, contos, tudo, tudo, tudo...
Vou escrever até morrer de cirrose hepática, aids ou lesão por esforços repetitivos mesmo! Vou escrever até ficar com a ponta dos dedos ensagüentadas e ela possa então colher a poesia que brota dos meus dentre unhas.
Ninguém segura. Senão me explodo!
Pode reclamar. Foda-se.

mundo moderno
pressa. pessoas passam.
posso? pode não,
aqui é sob pressão.

a pedra ronca?
não. é só o mar
que quebra.

Talvez porque minha costumeira indisciplina e essa preguiça macunaímica nunca me permitam cumprir sequer metade do que planejo. O fato é que até agora não li o tanto que havia imaginado ser capaz.
Além do mais, o violão continua encostado praticamente da mesma forma como o encontrei - como se por si só ele fosse fazer música ou mesmo aprendê-lo.
O calor é grande: ontem fui pentear os cabelos estabanados do sol e quase virei Ícaro; só não me converti em energia porque ainda não compreendemos muito bem aqueles papos do Einstein.
E o que mais me incomoda, incomoda de doer, é a total secura de inspiração. Eu, rodeado de páginas em branco, branco em páginas e na cabeça, produzindo pouco, pouquíssimo.
Até agora nenhuma carta dela.

Você já tomou chuva hoje?

Você dorme de meias?

Por que perdi assim o caminho do seu coração?

Você está com frio? Por quê?

Abro e cadabro meu coração: I need somebody to love, de verdade, não esses amores made in Taiwan que se locupletam com um sorriso falso e não entendem nada das coisas da vida.
Eu quero a poesia dos instantes e, acima de tudo, quero voltar logo pra Bahia porque a Bahia é o que o Brasil tem de bom, com exceção do Antonio Carlos Magalhães.
Tem dias que a gente é como que nem sente, passa feito nuvem e vai chover lá longe. Aí o sol se apaga feito vela de pavio curto e não sobram duendes pra colher o ouro porque nem arco-íris não há mais.
Onde está Wally?

Qual é a cor do céu azul?

Você confunde concorrer com correr? E confundir com fundir?

Véspera do nascimento. Vento. A chuva que molhou seu onde com lágrimas de felicidade só agora chegou a Taquarituba. Culpa do fuso horário ou do confuso andar dos dias na mente de Deus.
Véspera do nascimento. Execução da pena capital de todos os perus, leitões, panetones e outras flores e trevos de Natal. E Papai Noel, coitado!, vestido de coca-cola, vertendo suor por baixo de suas roupas nórdicas e suas barbas de algodão. Ainda se fosse algodão-doce...
Uma carta sua chegou-me - misto de alegria e desesperança crescente.
Mas isso não é importante: o mundo vai continuar sua vã existência.
Há uma alma em mim desgovernada como se dentro de um carro em alta velocidade eu risse cínico do perigo deletério de viver.

Não é perigoso ficar navegando na Internet?

Mais uns dias por aqui. Olhar fotográfico perscrutando o dia, os dias, dia-a-dia. Diáspora, eu diria, velhos amigos espalhados por esse espelho estranho chamado vida.
Subo pra colher a brisa do ar e cato um pouco de poesia no seu olhar. Só olhar, mais nada, nem alma, nem nada, mais nada.
Abro o guarda-chuva e salto lá de cima.

Sorvete de baunilha é gostoso?

Foi quando a beleza veio me visitar, irisdescendo meus olhos e dando novo alento às minhas retinas tão fatigadas. Veio num corpo ainda adolescente e tinha dois olhos castanhos que não me cansei de olhar melhor. Suas melenas escorriam pela face - o que tristemente impossibilitou o toque de meus lábios no beijo usual de recepção e despedida.
Pensei que viesse para ficar, ao menos uma noite. Mas não: almoçou e foi-se embora deixando para trás um suspiro já calejado de tanto perder as esperanças.
Na noite do mesmo dia conheci a versão safada da beleza. Uns dezessete anos, mas muito vivida, louca para me ceder os prazeres mais deliciosos da carne, trêmula carne que tanto gostamos. E usava saias que praticamente facilitavam a tarefa.
Day after: sorvete de acerola com gosto de saudade e overdose de Lula na TV. E eu torcendo para que a terceira menina, o terceiro olho da cara, a terceira margem do rio, me entenda, pois só ela é capaz de, em sua distância de onde está, sanar a sensaboria de meus dezoitos anos.

Você já nos mandou um vírus hoje?

Uma coisa é correr, outra é socorrer

Uma coisa é escorrer, outra é escorregar

Uma coisa é crescer, outra é ficar velho

você já levou seu cão pra passear hoje?

1.12.06

Do poder

quem pode, chove
promovento
e os piores são
pirados
onomatopaicos.

conto, canto,
estrelo os dedos
e, em cada estralo
que estremeço, moça,
jogo os dados,
arrisco, arisco,
uns degraus da vida
- de grau em grau,
meço a dádiva
da dúvida
e choro,
em dívida.

quem pode, gasta
eu gesto
no gosto
eu gosto
e me enrosco em pernas
que não são minhas
e me aninho em perdas
sempre tão sozinhas
e me atiro pedras
pontiagudas,
ferinas,
pesadas.

quem pode, interroga,
exclama,
reticencia, ri.
eu só ponto-finalizo.

Perdição

Com vontade de passar sua vida a limpo ou esticá-la sob ferro quente, não dormiu hoje. Ficou contando letrinhas do Notepad.

Seus sonhos, há muito vendidos, embaralhados.

28.11.06

[ ]

Na folha, lembranco vazazio
por lacunas lancinantes
alimentadas de fomes disformes
beletristas
como uma borboleta incolor:

- Salvai-me, ó proeta eminente! Salvai-me!
Porque a dor que se avizinha
é cruel amém dentroentre
cadassentimento
brotado
a-sós.
as coisas estão.
se fossem, seriam.
mas faz tempo
que só estão.
olhativas, embora
passivas.
passageiras como
um poema.

Esboços de uma estação passada (vol. 3)

"Olho alarmado.
E se a vida estiver do outro lado do espelho?"
(Millôr Fernandes)


Não sei... só pensando...
ela fala de cinema:
seja bem-vinda a este cenário de ciberdemência
espero sinceramente que você não se preocupe em acrescentar nada de útil ao grandioso intelecto dos nossos milhares de leitores. mesmo porque o inútil é o sal da vida. (ando bíblico hoje!)
ah!!! madrugada já me cai alta...
páro-me.

era mais ou menos esta a cara da menina dos meus olhos
era mais ou menos esta
era mais
era

acabei de fundar a A.L.I.A.S., pensando em todos aqueles marcadores argumentativos das aulas
A.L.I.A.S. - Associação dos Lindos e Inteligentes Amantes do Sexo. Ou Amantes do Sim. Ou Amantes dos Sonhos. Ou Amantes do Saber. Ou ainda, Amantes dos Símbolos, das Silhuetas, dos Sorrisos, das Sombras, dos Sambas, das Somas, dos Somos, dos Senões.

nonononononononono
nonononononononono
nonononononononono
fiquei louco ou foi o sol que se quedou torto?

um dia noiado
uma dor
um sonho
uma lágrima
uma vontade de ir embora

e u
ansioso pra ver o dia acabar em paz!

23.11.06

Esboços de uma estação passada (vol. 2)

todo mundo já viu objetos-voadores-não-identificados, mas você conhece o não-objeto?

falling down
como na música, como no filme de moretti, como na vida
como no vento que despenca adunco e recorta nossas tristezas
como o vento porque nem só de pão o homem viverá.

agora se quer saber?

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dia dos mortos
<><><><><><><><><><><>
quem tem certeza que estamos vivos?

férias. câmpus quase vazio.
bauru é apenas um solilóquio.
saudades de alguém.

pra matar a saudade, vale o repeteco:
tempo de amar

hoje é domingo, chove lágrimas lá fora, largando as rimas e outras coisas mais na enxurrada. dia de voltar a bauru, enfrentar novamente a realidade efêmera que está se esvaindo pelos anos idos universitários. esperança sempre presente de não mais tropeçar em ilusões e de que a candura da vida enfim se manifeste sem gotas de saudades. amplexos a todos, e um beijo na testa dela,

hoje ando quintano, cantando, quentando e requentando

para comemorar a páscoa
comi uma coelhinha!

é tempo de pensar na vida, essa desvida, desviada, desnada, desnatada.
é tempo de chorar o leite que nunca vai se derramar porque nem há leite.
é tempo de.

porque todos os sóis estão se apagando e o fim está chegando.

22.11.06

Esboços de uma estação passada (vol. 1)

Preciso escovar os dentes e lavar o cérebro também.
Lógica capitalista irreversível e nojenta: negue o ócio, negócio.

Hoje estou pra ontem.

A noite! A lua! As folhas caindo e ainda estamos na Primavera! Bauru!! Churros!!!
Que saudades de casa!! Mas...
Libertinagem, Edison!!

Bairro Fortunato. Nos meus ouvidos ressoa o verso de Camões: A fortuna não deve durar
Vou dormir triste. O sábado foi cheio de miséria numa rotina que grudou tristemente em minha retina.
Onde reina o amor?

Hoje acordei com vontade de escrever
principalmente porque dentro de mim há uma dor pungente
mas não tenho a menor idéia sobre o que escrever

..........................................
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ahahahahahahahahahahahah

Por mais que o mundo pareça perdido, há sempre o nada nadando feliz pelos rios que riem da gente.

20.11.06

Cegueira

Quem dera fizesse poemas visuais
e não versos sovinas,
vozes vazias
e viagens virgens;
Quem dera sobrevoasse alvissareiro
os vértices do mapa e da alma
avistasse, incólume,
a selvageria
dos vaticínios divinos.

Mas não;
vivo às voltas com meus vícios
de linguagem, da laringe e dos sonhos:
cicerones da vida, a faltar.

In Definição

Sem-teto, meus textos exclamam ao ver um vento cair. Eu, ensimesmado, não creio que vou amanhecer de novo.

16.11.06

Decálogo maravilhoso de Shacklee

1. Amar a Deus sobre todas as coisas.

Sempre que as luzes eram apagadas, Shacklee via as lampadinhas de natal pisca-piscando num exercício jingle bell. E assoviava baixinho a melodia que sabia de cor desde criança. Para a irritação dos seus 37 colegas de quarto, que chiavam e começavam logo a pancadaria.

Até que Shacklee tinha os miolos estourados, o sangue escorria por todo o quarto e os 37 colegas de quarto dormiam sorrindo, sonhando com a reconstrução de Shacklee no dia seguinte. Os nomes deles eram Santylli, Sarley, Sarlindson, Sattle, Saturnyn, Schuwawn, Seattlou, Sedaciou, Seen, Seenyour, Seenil, Seh, Seil, Sejarcovski, Semne, Sennix, Seoul, Seppya, Seqtawa, Serr, Sestafeyra, Seysse, Sezh, Shock, Shoun-tackle, Shytakee, Singarro, Singapuri, Souter, Sowterr, Suast, Suatjeklovz, Suaw, Sued, Syn, Swonnid e Tartaruga - os quartos organizavam- se por ordem alfabética, e eles ocupavam o de número 211C.

Shacklee olhava para os seu 37 colegas de quarto dormindo com o sorriso aberto, com um ronco tão alto de quebrar as vidraças, olhava para o quarto escuro e via as lampadinhas de natal pisca-piscando num exercício jingle bell, mas se continha para não assoviar de novo, olhava para o chão onde estava seu cérebro em pedaços. Olhava para cima, encontrava deus-pai-todo- poderoso, perdoava seus 37 colegas de quarto, amava seus 37 colegas de quarto, e orava e louvava.

Dia seguinte teria outros miolos para serem estourados.

***

Enquanto trabalhava cavando buracos para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila para serem cavados pelo próximo da fila para serem tapados pelo próximo da fila..., ficava medindo a distância que o separava dos demais colegas, todos organizados em ordem alfabética, tendo como critério de desempate, numa pouco provável hipótese de que dois ou mais dividissem o mesmo nome, o tipo sangüíneo, depois o número de dentes na boca e, por último, a quantidade de títulos de seu time de futebol. Se a distância fosse maior ou igual a 97 centímetros e meio, ele nem considerava o sujeito um ser de sua própria espécie. Entre 29 e 97 centímetros e meio, ora, era um conhecido. Próximos mesmo, só aqueles que suportassem, sol a pino, ficar em um raio menor ou igual a 29 centímetros dele.

2. Não tomar o nome de Deus em vão.

Shacklee usava duas gravatas ao mesmo tempo. Uma para sentir o nó e outra para se enforcar de vez. Sabia que era só no dia seguinte afrouxar para ser refeito novamente. Fácil como empilhar pedras e pilhar perdas. Quando Shacklee tinha sede, gritava Água. E chovia. Em todas, funcionava.

Por isso que, quando ele teve fome, gritou Água também. Mas não houve caldo de feijão, nem arroz empelotado, nem bife gordo desabando do céu. De sorte que Shacklee compreendeu que não deveria gritar Água para tudo.

3. Guardar para a religião domingos e dias de festa.

No último dia de cada semana, que para Shacklee era ora o décimo-segundo, ora o vigésimo-quinto, descansava-se. Shacklee aproveitava a folga para tirar as duas gravatas de todos os dias e vestir um kit logo com uma dúzia delas. Ficava tão emperequitado que nenhum dos seus conhecidos assumia o conhecimento, e mesmo os seus próximos fingiam ignorá-lo. Ainda bem que era um dia nulo, em que não se tapava nem se cavava. Shacklee costumava passá-lo deitado no sofá, no máximo com uma revista pornô debaixo dos olhos.

E dormia, e chorava, e desmontava-se para ver o que tinha dentro de seu corpo.

E fugia toda vez que via alguns de seus 37 colegas de quarto, pois sabia que ou eles queriam quebrá-lo outra vez ou, ao menos, lhe tomariam a revista que fazia alegres seus poucos momentos ociosos.

***

Os buracos na folhinha tornavam-se lacunas nervosíssimas na cabeça de Shacklee. Sentia-se como se não fosse, não houvesse. Era nada mais que uma vida debaixo do tapete, varrida. Ou uma vassoura, varredora, atrás da porta. Sem trinco, sem nada.

E ouvia os 37 colegas de quarto com risinhos desgraçados. Vontade de devorá-los um a um, arrancando-lhes a cabeça e sorvendo, pelo pescoço, cada gota de sangue deles.

Todos os assassinatos que Shacklee tramava eram anotados em um papel, meticulosamente. O papel, amarelo e levemente amassado, ficava guardado sempre entre as páginas 32 e 33 da revista pornô.

4. Honrar pai e mãe.

Às vezes Shacklee sonhava com o dia de seu nascimento. Na ocasião, cada relógio marcava um horário: 0h45, 24:45, 0:45, 12:45PM... E, dentro da chocadeira, a maioria dos ovos gorou. Shacklee foi o primeiro a saltar fora do ovo, após quebrar direitinho toda a casca, conforme havia aprendido no curso de nascimento ministrado pelo professor japonês Yamura Kawassakaki. Assim, quando os dois únicos filhotinhos outros saíram de suas cascas, Shacklee já estava forte o suficiente para trucidá-los com o bico.

Bico este, aliás, que foi extinto quando as aves, antes répteis, viraram humanos. Ou alguma coisa parecida porque da evolução os registros são poucos, precários e confusos.

5. Não matar.

(Pula)

6. Não pecar contra a castidade.

Virou lenda o dia em que Shacklee saiu caçando todas, todas as mulheres do campo de concentração. Eram 3 997, àquela altura - hoje não restam 19. Trancou-as em um quarto com pouco mais de 27 metros quadrados, amontoadas uma sobre as outras, aglutinadas. Despiu-as com uma serra elétrica e, sem preservativo nem nada, tratou de penetrá-las raivosamente, em fila.

O processo todo levou mais de 14 horas e entrou para o famigerado livro dos recordes do local. Além, é claro, de provocar a inveja e a ira de seus 37 colegas de quarto, que decidiram linchá-lo por mau comportamento perante as damas da sociedade campo-de-concentraçã ozense.

***

Shacklee foi encontrado, no dia seguinte, com as pernas de uma cadeira dentro de sua cabeça. Seu tênis marronzinho, a 200 metros de seu corpo. Uma grelha de carne foi utilizada para queimar suas partes pudentes. E nada, mas nada teve a declarar quando, redivivo, percebeu que gostaria de repetir tudo de novo.

7. Não furtar.

No campo de concentração ninguém podia esquecer a bola, a carteira ou a sogra sobre o banco da pracinha. Shacklee ia lá e tomava, com a sua gigante boca. Ninguém podia deixar resto no prato. Shacklee devorava, com prato e tudo - adorava os pratos, sobretudo. Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Um dia Shacklee roubou, para si e sua coleção de objetos estranhos roubados, a parede e o chão. De quebra levou a pessoa que ia entrar nela e a rede dependurada.

Quando foram reclamar ao delegado de polícia, este contra-argumentou que nada havia visto e, portanto, nada houve. Nem a declarar.

8. Não levantar falso testemunho.

Quando era criança, Shacklee gostava de brincar de bate-cara. Ou pique-esconde, de acordo com o regionalismo que mais convier, ser, fingir. Às vezes, piquenique. Sua mania era acabar de contar e gritar bem alto os podres dos amiguinhos, atualmente seus 37 colegas de quarto.

Por isso apanhava, sempre.

Por isso não tinha medo de escuro e preferia inventar lampadinhas de natal.

Para disfarças as estrelinhas. Nas entrelinhas.

9. Não desejar a mulher do próximo.

As 19 mulheres restantes no campo de concentração tinham dono. No calcanhar esquerdo de cada uma delas, um código de barras que, quando passado na maquininha de supermercado, acusam o seu proprietário - além de idade, telefone para recados, cor da pele e posição favorita para o coito.

Shacklee, que já possuiu todas elas e outras 3 978, havia ficado sem nenhuma.

10. Não cobiçar as coisas alheias.

Inventou-se um inventário minucioso pleonástico dos itens do campo de concentração:

· 2 487 meias de percal azuis
· 2 332 sapatos amarelos de couro maciço
· 2 198 cadáveres em putrefação
· 1 984 ossos para pentear os cabelos
· 1 870 telefones de latão
· 1 870 linhas telefônicas cortadas
· 1 869 livros de auto-ajuda sem valor comercial
· 1 850 cartilhas com o abecedário
· 1 549 sonetos para catar mulher do próximo
· 1 490 próximos sem mulher
· 1 377 gnomos de jardim de cócoras
· 1 376 gnomos de jardim sentados
· 1 370 gnomos de jardim em pé
· 1 369 gnomos de jardim em posição fetal
· 1 354 gnomos de jardim normais
· 1 350 brancas de neve de jardim
· 1 112 carros para ir embora
· 1 100 lampadinhas de natal
· 1 023 bandejas com comida macrobiótica
· 1 011 punhais ensangüentados
· 1 002 revistas pornô
· 913 grelhas de passar carne e matar pessoas linchadas
· 903 esperanças insones
· 901 cadeiras para enfiar na cabeça das pessoas
· 895 vassouras
· 876 papéis amarelos
· 857 redes em fiapos
· 857 canetas bic
· 856 paredes com a pintura descascada
· 850 sonhos, pesadelos e viagens alucinadas
· 803 folhinhas
· 802 carteiras
· 802 algemas
· 800 chocadeiras velhas
· 746 pratos quebrados mas um pouco inteiros
· 713 tênis marronzinhos
· 534 sogras
· 500 portas sem trinco nem nada
· 245 relógios de ponteiro
· 185 relógios de numerozinhos
· 101 livros dos recordes ultrapassados
· 97 bolas de capotão
· 37 colegas de quarto
· 19 mulheres vivas
· 14 gravatas
· 13 bancos de sentar
· 12 tapetes com muita sujeira debaixo deles
· 9 supermercados falidos
· 7 sofás cheios de restos de chips
· 5 casas engraçadas
· 3 versos brancos
· 2 delegados de polícia
· 1 rima rica
· 1 clips

Num arroubo certeiro, Shacklee matou os outros personagens e ficou com todos os pertences.

4.11.06

Estão

O certo é sertão
e não este tesão
onde estão contidos
os trejeitos tristes
na mira da
namorada.

O certo é ser tão
tesão
quanto os que estão
- pífia questão -
na mira da
namorada.

1.11.06

Ciclo

Abrupto
me entupir
de entorpecente
em torpes doses
crescentes
até o amanhã ser
sol otário
eu.

29.10.06

Fome de notícias

Famigeradas sopas de jornal continuavam sendo a base alimentar daquela família. Com uma importante diferença: o menino mais novo, sete anos, não sabia ler as manchetes que comia todos os dias.

- Cê precisa matriculá o Jeremia na iscola, cumádi... – dizia Filomena, a vizinha astuta.

- Deixa disso, cumádi. Perdê tempo pra quê? Qui im casa ele mi ajuda e dispois inda tem tempo pra ganhar uns troco como engraxate...

Todos os meses, Maria das Dores recebe a importância de 50 reais, a título de ajuda, do Governo Federal. O dinheiro, mero paliativo que não combate a pobreza estruturalmente, vem fácil, sem exigir nenhuma contrapartida – Jeremias continua analfabeto. A não ser, é claro, o voto, garantido. Maria das Dores já sabe quais botõezinhos apertar na urna eletrônica, muito bem, clap clap clap.

Nos últimos quatro anos muitos assuntos foram engolidos por Maria das Dores, Jeremias e seus outros oito filhos. Alguns, ela até chegou a bater o olho e tentou compreender as letrinhas. Outros, nem percebeu. Jeremias não entendeu nenhum deles. No dia em que almoçou uma página com a foto do Delúbio Soares, tinha ouvido umas coisas estranhas no rádio e perguntou:

- Manhê! Que qui é mensalão?

- Num sei, fio, num sei. Mais si é grande deve di sê coisa boa... Credite: vai miorá a vida da gente...

Achava engraçado quando no prato estava a careca reluzente do Marcos Valério e a sopa de jornal virava sopa de letrinhas com José Adalberto Vieira da Silva, aquele dos dólares na cueca. Devorava apetitosamente Palocci, Gedimar, Zé Dirceu e tantos outros homens, digo, nomes. Nomes feios, avessos.

Um dia, Jeremias ouviu discurso de político quando engraxava sapatos de algum bacana.

- Manhê! Que qui é honestidade?

- Ih, fio, num sei. Di onde cê tirô isso? Acho que num ixiste...

- I ética?

- Ai, essi minino, viu!? Ingora deu pra ficá doidinho, só inventano palavra...

E voltou para sua panelinha velha no barraco, a cozinhar o jornal de ontem com a foto de um presidente sorridente, gordo e barbudo, apedeuta a debochar da ignorância que o elegeu.

Ah, se a memória não fosse tão curta e a informação tão mal-distribuída, Maria das Dores entenderia que Fome Zero mesmo só nas comilanças da Granja do Torto, cujo churrasqueiro... Bem, ela não sabe de nada – e, nisso, se assemelha ao presidente. Agora tem que acabar logo seu almoço de jornal para, em seguida, correr para a escola onde seu filho jamais estudará. Sabe de cor quais numerozinhos apertar para que uma foto parecida com a de seu almoço apareça na tela. Aí é o verde. E mais quatro anos de paliativos para palitar os parcos dentes que lhe restam inteiros na boca.

24.10.06

Para ver o mar
o melhor lugar
é dentro.

Para ver a terra
quem mais carrega
o vento.

Para ver o dia
qualquer melodia
invento.

Para ver a noite
assim de açoite
um tempo.

Para ver você
entender você
só eu mesmo.

20.10.06

Carnificina

Os mortos, com hora marcada,
Não sabem de nada.
Agora dormem, amanhã trabalham.
Banham-se, fazem a barba.
Tornam a dormir a última noite.

Não sabem de nada.
Nem imaginam que serão notícia.

16.10.06

Quadrinha

Que tudo que ainda me reste seja o teu sorriso
Na réstia estranha das lembranças luciluzidas
Que nada do que te sobre seja do meu vazio
Imenso na sacada onde mora o horizonte fundo

6.10.06

Puto

Sou um poeta morto
de cujo corpo, puto,
ressôo em coro cócegas
sem as quais o tudo
caminharia, ó ninharia
às cegas - e riria.

E a cada mínimo
minuto
que passa
digo adeus ao relógio
às horas, à lógica
e aos lábios que amei

Porque, poeta morto,
não sou mais refém do tempo
nem do corpo
nem escasso:
faço das pontes sobre o nada
o algoritmo destes versos
e, puto,
aprisiono cada minuto
em um ramalhete de nulo
tributo
sobre meu túmulo.

2.10.06

Caixa de entulhos

tudo o que a vida me acumulou
tratei de descartar:
trabalhos, amores, livros...

na ponta dos dedos
sobrou só o céu da boca
e um naco de língua

agora sou uma nesga de nada
nadando no vazio
do silêncio.

29.9.06

, e .

Vírgula no meio, ponto no final da frase. Era sempre assim. Às vezes, ela aparecia, sumia, tornava a aparecer. Noutras era só ele. Soberano. Repetitivo. Renitente. Ela era a mulher, alongava a conversa, fazia uma pausa sutil, quase sensual. Ele, o homem. Seco. Ríspido. Forte.

Quando se encontraram, por um acidente de gramática ou uma dobra da língua portuguesa, o ponto jogou a vírgula na cama, despiu-a e logo partiu para cima. Ela cedeu. Amaram-se, armaram-se; criou-se um novo problema na cabeça dos escritores: por que ponto e vírgula, meu Deus?

22.9.06

Cada

Cada verso
que vago
é um terço
que rezo
amém

Cada verso
que trago
é um vaso
que quebro
crec

Cada verso
que sonho
é um vício
que fumo
shhh

Cada verso
que sinto
é um você
que sou
fim.

7.9.06

Lâmina

Quando a polícia chegou, tudo que encontrou foi um gelado corpo de mulher sobre a cama. Seus cabelos louros sobre a tez delineavam os seios, fartos, lindos, quase extravagantes. Era possível ver um dos mamilos, descobertos, bicos rosados.

O investigador Hamílton tentou disfarçar o misto de satisfação e constrangimento. Mas, em meio à morbidez da cena, reconheceu a beleza efêmera de quem partiu. Vinte e poucos anos, porte de modelo e - literalmente - fodida, pensou alto.

Ao lado, no criado mudo, uma carteira aberta sem nenhum tostão. No chão, uma camisinha usada e dois copos, que rolaram até pertinho da parede, cheirando à uísque barato.

A satisfação e o constrangimento cederam espaço ao incômodo. Hamílton tinha impressão de que a falecida seguia cada um de seus passos, com seus olhos verdes abertos, assustadores, e um pouco, digamos, lânguidos.

Súbito, defenestrou-se. Sequer notou como a lâmina que cortara o pescoço da moça aparecia no espelho do teto:

A N I M Â L

14.8.06

Fruta-e-flor

Quando leio um conto travestido de crônica, ou uma crônica com nuances de conto, e nele(a) percebo pitadas de autobiografia recente (semana passada minha empregada assaltou todas as minhas jóias; ontem fiz feira e encontrei duas cenouras estragadas; há quinze anos meu pai morreu; arranquei um dente e estou sentindo, assim, um vazio...; meu terapeuta já disse: é preciso tomar uma decisão se eu quiser mesmo reconquistar o prazer de viver; e picuinhas do gênero), sou tomado por uma ojeriza estranha. Talvez porque, pessoalmente, me apeteça discutir, nesta ordem: 1) as idéias; 2) as pessoas; 3) as coisas. E, por conseguinte, porque nesses excertos autobiográficos, em geral, primeiro afloram as coisas (só como chocolates belgas; o diabo veste Prada; olha só como são belos os cristais daquela mesa; meu cachorro, ultimamente, anda amuado; e fricotes afins); em seguida, as pessoas (notou só como a Sicrana anda deprê?; você não sabe, mas o Fulano foi demitido ontem; olha, não comente com ninguém sobre o Beltrano, só que a saúde dele está capengando; lembra do Tal? Morreu!; e burburinhos etc.); e, só em casos absolutamente excepcionais, as idéias.

Em minha cabeça anuviada moram alguns idioletos, sem pé nem letos, e um isoleto que jamais entendo sozinho. Todos eles, intrigantemente, concordam com uma coisa: os textos aborrecedores autobiográficos são como um quadro de fruta-e-flor. Explico já. Na desfaçatez loquaz da ignorância artística em que resido, criei um verbete especial para definir quadros de quem não é artista, mas, por modismo, inveja ou falta de que fazer, resolve pintar o sete cor-de-rosa mesmo sem saber fazer o zero com o (então) na areia. Assim, ó:

Fruta-e-flor: Adj. [de fruta e flor] 1. Diz-se da pintura que denota imperícia artística e falta de habilidade técnica. 2. Artesanato (não-arte) feito por pseudo-artistas de forno-e-fogão. 3. Arte sem criação.

Mas hoje me reservo ao direito de pintar meu quadro fruta-e-flor. Tudo o que sempre abominei sai-me feito um bilhete à mão, cacoete ilusório de escrevente mequetrefe aprendendo a driblar as linhas. É como se fosse um dia em que acordei pelo avesso e/ou após sonhar com três urubus desdentados sobre uma inspiração cadavérica. E então quero rasgar palavras a amigos, uns lembrados outros não, que deixarei fluírem ao sabor não-hierárquico do pensamento, a seguir:

Morar em Bauru, por exemplo, não foi estúpido só porque lá algumas pessoas passaram a fazer parte de mim. Giovana, a garota que desde o primeiro dia de aula falava inglês very well, acabou se revelando uma amiga daquelas. De colega a amiga a parceira de TCC a... sócia em um futuro empreendimento de sucesso. Aguardem!

Aretha atriz com seus sonhos e medos e carinho. Laura com seu colo. Vinícius com suas tiradas impagáveis e BrinQs, o Zebra, meu dileto irmão. Juliana com imprevisíveis lembranças atemporais de Sorocaba. O Bruninho, que me brinda hoje sendo hóspede hebdomadário – momentos de vida em movimento em minha quase sempre pacata casa vazia.

E a lista poderia continuar, continuar, continuar...

De Taquarituba, carrego na memória a Gabi, primamiga com quem compartilhava versos e reversos. Iarley, presente nas incursões noturnas muitas vezes vozes repletas de desventuras. Mas lá a existência pode ser dividida em fases, cada qual com suas amizades sinceras do momento, que eu não vou enumerar aqui por preguiça – não por desafeto, juro.

Escrever dá uma saudade. Ser adulto é complicado: são responsabilidades, contas a pagar, gentes grandes pra pensar, falta de sossego, problemas. São Paulo é uma enormidade caótica, em si própria um antipoema transcendente, uma ferida sem cura, um atropelamento. Em algum momento eu ia dizer detrusor, mas agora não me lembro mais onde-quando.

Sei que, caso tivesse paciência sobrando, poderia continuar este texto por milhares de caracteres ainda. Só que não tenho. Tenho mas acabou.

E aqui finalizo meu horrível quadro fruta-e-flor.

Amém.

27.7.06

Imbróglio e Embrulho

Um dia, ou uma noite, não sei ao certo porque não vi, estavam todos os nove gnomos cor-de-abóbora deitados ao sol do meio-dia, ou à lua da meia-noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, e eles diziam sem parar bom dia, ou boa noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, e começaram todos a tentar esquecer a pequenez daquele dia, ou daquela noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, fonte confiável, só que não é nada fácil conseguir esquecer todo um dia, ou uma noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, fonte confiável, não tem nem como contestar.

26.7.06

AmorCego

Feito sonar detecta tudo que é tátil de se pegar, tocar, apalpar, acariciar. Maior cego, refestela suas asas pelas brasas vermelhas de paixão: o que é uma coisa bela? Na escuridão latente, na lua cheia da gente, vampiriza-se e suga o sangue vermelho do pescoço sensual da moça que dorme tranqüila e sonha sonhos de amor na cama. Morcego:

- Não nego, carrego em mim a amálgama dor de ver verter sangue e ter prazer por cada gota que me sacia. O cálice sagrado. Meu segredo lhe agrada?

Agride. O sorriso matreiro da moça que revelava um sonho prestes a se converter em orgasmo vira um gemido, um ai, e agora o pesadelo é que ela é atracada contra a vontade. Saudade do instante imediatamente anterior. Alguma algema a ata à cama?

Morcego cabisbaixo. Morcego de cabeça pra baixo. Dependurado no teto, fino-trato, parece que traja um fraque suíço. Saboreia o sangue que escorre pelo canto da boca, saliva enquanto contempla a bela moça dormindo semi-transparente. Obra cumprida, só a marca dos dentes em seu pescoço. Vampiro:

- Firo a essência da vida porque persigo a alma. O sangue, organismo, não passa de adorno à minha missão. Uma hora eu consigo provar a todos, provando sangue visceral, vermelho, fogo, onde está o prazer.

Vermelho. O horizonte, vermelhando, anuncia o nascer de novo dia. Hora de ir embora, abrir as asas, dar adeus ao nada-testemunha. Amor cego é morcego: mama e voa.

17.7.06

Sua expectativa, meu expectorante

Quando chegar em casa, a porta entreaberta e os livros saqueados, não se esqueça de apagar a luz, para não dar na vista. É preciso avisar os vizinhos que estamos fugindo, a fim de evitar alarde maior, polícia nas costas, fotografia em jornal, mãe e pai chorando. Durante o percurso, economizemos os beijos. Os suores, deixemos para depois.

- Quantos passos ainda faltam?

- Não sei nada de contagem regressiva.

Eu olho para o relógio, os ponteiros me atordoam de fome. Lógica, religião, azulejos, aleijados, corante vermelho pintando o saguão. Você perdida, que nem nós dois.

- Quantos passos já fomos?

- Mais do que posso. Menos do que piso. O mesmo que passamos.

A sirene apita e nos lembra o que somos. Sequer torcida vale a pena se o único nó que precisamos não contém glúten. Só um gosto de sacolejo e um sentimento de escuridão. Gases por toda a parte anunciam a morte que foi ontem, anteontem, semana passada. Por instantes, sinto que pertencemos a um mundo extraordinário de canção, tédio, fantasia, fogo e lágrimas.

Carrego três cebolas cruas no bolso para que, alimentados, halitemos mal. Você traz a mala, onde estão roupas sujas, esperança e pavor. Voltemos à realidade que o trabalho nos espera nos classificados do Estadão.

21.6.06

Síntese

No percurso toda
pedra

é uma perda de
tempo


Intruso na vida não
percebo

nem as dobras nem as
cobras


É como se eu fosse
deus

ou qualquer totem em
desuso


É como se eu fosse
espelho

em uns sete cacos
refletido


Mas não, eu sou só
eu

e um ou outro resto de
ego.

19.6.06

Senão sina sim, não!

Defino em três
os álibis que habito:
o último filme em cartaz
meu poeta favorito
e a inépcia perspicaz.

Se quero dormir,
fabrico sonhos;
Se preciso sorrir,
invento cócegas;
E o tempo todo
não me canso
de ser quem
um dia me penso
ou sequer soube.

Sou o et cetera
que jamais
se completou.

Suave como uma dobra

Era estranho morar numa dobra. Ali onde os ponteiros do tempo jamais se cruzavam e o remelexo do vazio podia ser sentido às folhas da pele, em arrepios que não títeres nem alicerçados. Morar numa dobra, sem sombra, sem sobra, era estranho.

Mas dava para brincar eternamente de pique-esconde, escorregar nos vincos, colher pó, visitar esperanças enrustidas, dormir sem travesseiro. Sistófeles se aproveitava:

- Cada obra é uma dobra que abrocadabro.

- Cadoquê?

- Porque se assopro, voa. Ué?!

- Sabinão?

E o maior medo era quando a dobra ia esticando, esticando, esticando. Se deixasse de ser dobra, passada assim a ferro quente, a existência sumiria. Eram os mais doces instantes de melancolia que Deus inventava.

16.6.06

Suado ensaio de viver sem paz (ou Deus me livre!)

meus olhares melhores perdidos aos milhares
contracenam contra sonhos:
quero me livrar
das praças
dos preços
das pedras
das perdas

entrementes entre atritos e baralhos cortados
meu corpo subtrai entreluzido:
quero me livrar
dos cremes
dos crimes
das dobras
das curvas

no álibi do estribilho recito três versos tristes
sugados pela luz e pelo calor:
quero me livrar
das sobras
das sogras
das cobras
dos planos

estranhos suores percorrem-me como interrogações
pululando as blasfêmias das fêmeas:
quero me livrar
das tramas
dos tratos
dos braços
dos hífens

ensimesmado me contento com os círculos estrábicos
que alimentam pesadelos invertidos:
quero me livrar
dos fracos
das zebras
dos trecos
dos terços

ai de mim me quedar só numa contramão qualquer
longe dos atalhos e dos dissabores:
quero me livrar
dos prazos
das presas
dos presos
das placas

no espelho sempre encontrar a glória passada
nó na garganta de saudade triste:
quero me livrar
dos troços
das traças
dos extras
das lindas

durante madrugadas ociosas de tédio e gravidezes
venham-me vôos vívidos desvirtuosos:
quero me livrar
dos átrios
dos astros
dos livros
dos fortes

para repousar pálido e sorridente feito um feto
natimorto que se recusa a morrer:
quero me livrar
das febres
das fibras
dos privês
das terças

e então me sentir um crocodilo branco um tanto
maltrapilho de cansaço e tinta:
quero me livrar
das tripas
das trupes
dos cromos
das vestes

porque dentro de cada vida há um atributo secreto
repleto do mais acre sabor:
quero me livrar
dos antros
das tremas
das trenas
dos ternos

por fim sobreviver na embaixada mais próxima
contente por ser traste
aflito por ser gente
obtusa de sofrer.
para me livrar
das traves
das tampas
das gordas
dos testes
dos tontos
dos filhos
das chuvas
dos nada de mais.

6.6.06

Simples, o nada se inventa depois

rasgo fiascos para não dormir
enquanto o rádio toca uma valsa
que ninguém dança

do outro lado da lua
um codinome imberbe
me espia
me aflige

adorado
suspiro
e me quedo:
- donde vêm os soluços
que me soçobram?

saudações!

26.5.06

Sortimento

Um amor que se preza, a surpresa burila:
Na lida há tempo pra cerzir amanheceres
E na alcova cego sossego em suaves prazeres.
Hoje não sei se tem lua
- a cidade apagou -
Não entendo de ventos
- a rosa já era -
Nem mais quero chorar
- meu relógio murchou!

Ao atravessar a rua quero encontrar o pensamento
antigo
- e nem por isso esquecido ou avesso -
guardado bem dobradinho
com três tantos de carinho
no canto do teu bolso esquerdo
- talvez protegido sob um guarda-chuva.
É nele que se apóia a crença
- nem mambembe, nem mambira -
naquele quê de eterno
quasenada, diz tudo:
- Eu te amo!

22.5.06

Solilóquio

Atadas as mãos, era ateu por convicção porque, à toa, se atou ao credo de crer na não-existência de Deus. Verbudivino qual-o-quê, vou costurar meu salário baixo atrás da escada! Não quero mais vender o almoço para comprar duas entradas de cinema.

Mas não é só o que irrita. Irrita também o suposto esmero em se vestir e a falsidade que nos exigem: barbear-se todas as manhãs, não arrotar em público, jamais vomitar na cara do entrevistado... À meia-noite, todos os jornalistas são castos e castigados.

18.5.06

Soldo

Estranho silêncio me percorre
Enquanto tento respirar-te

Onde? Por quem?

Debaixo da cama, em coma,
o cio repousa atado ao solo.

14.5.06

Solidão

o alvoroço
que me consome
a alma

não é um espasmo
nem um soluço

a falta
de um lenço para assoar
um rosto para olhar:
- estou com sono!

faz frio no cobertor esta noite.

12.5.06

Separação

Confirmar se o mar era mesmo aquela distância enorme cansava meus ensimesmados olhos de exatidão e cemitério. Parado na praia, feria-me com o soslaio de pensamentos: sonhar com Deus, correr na chuva, casar, comer uma torta de limão, me perder nas rimas de um poema velho assinado por Leminski. Ler mais.

Gosto. Mas tem sempre uns instantes de dor e sobra. Sombras para me esconder são poucas. Procurei por você todas as noites esta semana, na segunda esmagada num pesadelo, na terça borboleta azul, na quarta um punhal no peito, na quinta solidão. Hoje não sei como vai ser.

- Vamos pegar um cinema?

- Ah... Tá frio, melhor sorrir em casa.

Entre nós dois foi se firmando um continente. Depois, as lágrimas, um oceano. Atlântico. Eu África, você América. Pacífico. Eu uma ilhota a ver navios.

9.5.06

Von Rich

Por que isso na cabeça?

Era ela quem lhe fazia todos os regalos, desde alimentar no peito até aquela ula-ula de viagem louca pra Somália - ao preço de estelionatários sei lá quantos mil ou milhões de xelins. Era ela quem costurava a meia furada, era ela quem contava histórias pra menina dormir, era ela quem esperava acordada em noites de lua repleta quando lobisomem é colega da faculdade que só quer papar.

Aline, ali, ensimesmada. Olhava e não enxergava mãe. Entendia o mundo como, adolescente, tudo diferente. Mãe igual à oligarquia de seres adultos chatos cheios de regras, regalias, impostos e álibis. Nunca do bem.

Um dia cismou que queria ganhar um escorregador. Dia seguinte, lá estava, novinho em folha e caule, plantado no jardim de seu quarto cor-de-rosa. Depois vieram barbie, kit de vamos-brincar-de-cozinha, modess, coleção de camisinhas, muita muita muita roupa de grife, sempre um namoradinho novo ou importado, grana pra balada, carro novo carro novo carro novo pra rodar por aí. E uma bolsa obtusa. E sessões semanais em salão de beleza, terapia, acupuntura, massagem, escambau.

Mauro, um dos namorados. O mais inteligente de todos, corajoso e entendido de drogas psicodélicas. Alucinados, viam juntos: sete anõezinhos, gnomos cor-de-abóbora, estátuas reluzentes da liberdade que nada, cds dos beatles lucy-in-the-skies, putas suecas vestidas como marcianas, sinônimos de zumbidos, alcachofras fosforescentes, ets de todos os tamanhos, muitos anéis para pouco saturno. Endoidecidos, viajavam juntos, não só Somália: Islândia, Malásia, Tailândia, Holanda, Suazilândia, Mongólia, Groenlândia, Flórida, Alabama, Florianópolis, São Paulo, Holambra, Águas de Lindóia e até América Latina.

Mãe não se reconhecia mais no espelho, em sete pedaços e nenhum caroço. Trêmula como se fosse maldição ou um estranho sentimento premonitório. Mãe e o terço na mão, o diabo na cabeça, a foice cutucando as costas.

No quarto ao lado toneladas de ervas daninhas. Travesseiro. Cheiro. O plano esboçado no papel de pão: mapa, lapiseira, borracha, setinhas indicativas de eu-vou-aqui-você-por-ali-vai-pra-lá. Todos os dias, mentalizando. Depois fumando o mapa, cavando a veia com a lapiseira. Cansando, transando, dormindo.

Era noite de 31 de outubro. Mauro entrou na casa armado com um estilingue e pedrinhas pontiagudas envenenadas. Mãe e pai na cama, dormindo pela décima sétima vez. Sangue na cabeça dos dois. Dor. Sangue. Aline sorriu.

E é por isso, minha filha, por causa dessa história que aconteceu há tanto tempo, que hoje sua mãe e eu dormimos de capacete.

28.4.06

Van Gogh

Porque curtia ecos, tudo o que lhe pesava era o vazio no estômago e aquele ruído interminável e rouco. Sacolejava o nada quando e enquanto caminhava pelas ruas, madrugada afora, sem juízo, sem asco, sem virtude.

Assoviava o silêncio noturno, louvava a escuridão profana. Bastavam as primeiras riscas de sol surgirem para partir, eterna busca e fuga, eclipse impossível. Fé cega. Montanhas, amanhã, Maomé, manhã. Amígdalas. A protuberância exata entre o ir-vir, ser-descer. O soluço.

Na rua, um caco de vidro e um tropeço. Um cadáver sem jazigo, seu sangue ressequido. A podridão, a miséria, o caos metropolitano reverberando pelas reentrâncias absurdas do cimento. Guimbas, restos de camisinha, uma gilete. Tudo o que conta a breve história do segredo humano, com seus flagelos, prazeres e vociferações de ódio, acumulado em objetos abjetos. Ele circulando, oco, famélico. Desviando para não desmaiar. Ignorando. Como todos fazemos fingindo-nos cidadãos, atropelando a realidade vil.

Nenhuma moça bonita exalando sensualidade, nenhum rapaz corado com cheiro de meia-noite, sequer uma garota de programa na flor da idade ou um vigia bem-apessoado. Nenhum espírito com carne, nem sonâmbulo perdido ou notívago encontrado. Nem eu na rua. Nem eu.

Do eco interno, porque curtia ecos, tudo o que sentia era o que lhe pesava, o vazio no estômago, aquele ruído interminável e rouco. Examinava seus dentes e, desolado, percebia que ainda não sabiam o que ser definitivamente. Louco, Van Gogh ia pirar se não se aprendesse logo vampiro. Sangue na tela.

17.4.06

Nada

Esparadrapos.
Para remendar o tédio.
(Tão simples quanto scraps!)

12.4.06

Mariana

A cada te amo
penteio o poente
calibro a lua que vai encher

Meus pulmões
em que todo ar te respira
aspira
inspira
versos que todos me
pira.

Ensimesmado sou em ti
pleno
um altiplano impossível
de asa-delta
de vênus.

A cada te amo
minhas mãos trêmulas
persistem

Atiçam
o palpável
o paladar

Tilintam
o bem
o bemol.

A cada te amo
reitero os sonhos do amanhã
(adois)
esfrego os olhos do hoje
(prassempre)
sussurro a lembrança de um beijo
(sóvocê)

A cada te amo
depoisifico o antes
durante.

9.4.06

2. Coelhinho da Páscoa que trazes pra mim...

Internet é boa pra se deitar e embalar embalar embalar
Embaraçar
Enredar até se nos perder.

3.4.06

Minilouvor à olvidada obra

Não dava mais tempo de imprimir, dizia Verinha, e num gesto soberbo arrancou todas as folhas que sobravam e começou a colá-las de volta na primeira árvore com que se deparou. As pessoas estranharam, mas se não era ela a Verinha quem seria que erra sozinha pelas ruas desconhecidas de Sin City?

Súbito, táxi.

- Pra Lapa, por favor. E rápido.

Os sinais vermelhos ficaram para trás e, aos poucos, o Parque da Aclimação e seu lago sujo e seus cisnes brancos e suas árvores folhas folhas folhas foram se esquecendo pelo trânsito poluição buzinaço beéeeeéeeéem, ô, fóooooóó, cof cof cof.

Verinha era um braço direito, um esquerdo e um par de pernas. Outro dia lá estava costurando uma camisa para o pai. Noutro fazia a feira para a vó. Noutroutro ia com a mãe pro hospital. O namorado reclamava:

- Sobra tempo pra mim hoje à noite?

E lá ia ela novamente pra casa do dito cujo. Trepavam até alta madrugada e depois se quedavam exaustos, estarrecidos. E sonhavam com gosto de quero-mais, de-novo, mais-uma-vez. Às vezes acordavam. Outras esqueciam.

O cinema que esperasse. Filme novo em cartaz, como é mesmo o nome, que cabeça a minha? Aquele do Oscar. Não o que ganhou, mas aquele que todos diziam que era o favorito e tal. Sim, sim... Esse mesmo. Vai ficar para outro dia, porque meus olhos já não agüentam, fadigados de dia-e-noite sem parar.

O par de pernas não parava. Verinha no ônibus, Verinha no metrô, Verinha no táxiiiii. Verinha a pé. Verinha ao léu, voando, vento. Verinha no varal.

Era uma vez um poema bonito pintado na janela. Era uma vitrina para os sonhos. Era uma canção de amor e Verinha morava lá como exemplo avantajado. Era uma vez tudo isso que me esqueci o autor, as rimas e a imaginação.

30.3.06

Acinte

como chocolates
mastigar os minutos
oras!

despretensos
grudar chicletes nos
ponteiros nus

estilhaçar
tique-taques de espelho
retrovisor.

27.3.06

Lágrimas de março

Infinitas
As pessoas se consomem
nas lágrimas de março abrindo o outono.

Ou,
tona a derivar em sal,
solzinho só
do frio
Vazio

que começa
com essa
sina vespertina
Que sucede-nos
assustadoramente.

22.3.06

Os ânimos jamais são apaziguados quando há uma cerveja estragada entre nós dois

Arrancou uma folha. Dessas com cheiro de infância traquinas. Uma folha que não servia para fumar nem ler nem escrever nem sonhar. Arrancou.

Todos-dias Jeremias come alface. Tempera com açúcar e olha feio para as pessoas que estranham. Destrambelhadas são todas-pessoas que estranham, azedam, brincam de couve-flor quando se são brócolis despenteados.

Ele tem uma horta no quintal. Planta salsinha, açafrão, cenoura, manjericão, espinafre, almeirão, bacon, filarmônica, macacos e gente de verdade. Nunca colhe. Espera chover e cair-tudo na sua mesa. Sobremesa.

Jeremias um-dia acordou de bom-humor:

- Amor, traz mais café por favor?

Jeremias outro-dia acordou de mau-humor:

- Mulher, café!

Jeremias nunca dorme. É desses homens que sonambulam acordados, se recusam a contar os carneirinhos (designam empregados para tal árdua tarefa) e riscam lousas verdes em todos os semáforos da imaginação. Jeremias nunca dorme.

Era vinte e três de fevereiro quando seu pai morreu.

Arrancou outra folha. Daquelas com cheiro de saudades reformuladas. Uma folha que já nem era mais verde nem espelhava a realidade nem carregava orvalho nem ressequido. Arrancou.

Todas-noites Jeremias toma café. Joga sal aos baldes dentro da xícara e zanga-se se algum feladap olha torto para ele. Aliás, alheias são todas-pessoas que não deveriam existir, porque assobradam e assombram, deveriam obradar os assoalhos dos-outros, aqueles quem dobram. Os sinos também.

Ele tem um carro velho que parece uma Brastemp aposentada. Dentro, um bocadinho de-tudo: bancos, porta-luvas, toca-fitas, acelerador, câmbio, freio-de-mão, enxada, velas-de-sete-dias, furadeira, fio-dental, hífens e outras-palavras-compostas. Em compotas.

Jeremias uma-noite saiu, beber:

- Garçom! Manda outra!

Jeremias outra-noite saiu, beber:

- Pendura!

Jeremias sabe o que acontece com os bichos-papões que moram no telhado.

17.3.06

Despedida

Vim ver o tempo passar
raspar ótimo
o vento. Ore.

Vim torcer
forte.
Pra que tudo acabe e
baca, beca, batuque
tudo.

5.3.06

Bagulhos e bugalhos

O joelho está crescendo. Nanny suspira toda vez que vê, e é que com desvelo que leva a vela, e vela até o amanhã ser hoje, ódio.

No caramanchão, do mesmo em que Aurélia de Alencar conduziu o marido na chácara de "Senhora", um homem rude de nome cru esperava. No caramanchão, a revanche. Era o que diziam os anúncios em todos os jornais.

Nanny não lia. Fazia que nem sopa de letrinhas, chupava como se não houvesse diferença entre as e bês e cês.

Quando o joelho está crescendo, Nanny sabe que o problema é a falta de gilete. Vai embarcar noutras.

21.2.06

Solidão, que nada

Atrás do balcão nojento, um cálice respinga sabedoria. Só. A redescoberta do acaso está de joelhos no Brasil, em São Paulo, na Aclimação, no nada. Descaminhos. Solilóquios. Pecilotérmicos.
A abstração termina quando abril começa e leva junto o avião que decola, sobe, alto, longe.

18.2.06

Sobre o jornalismo

Cortar palavras, era feliz assim. De cada três, uma fora. Mais três, outra fora. E a lixeira grande, crescendo, grande, crescendo, grande. Até estourar. Cataploft! e jogar todas as letrinhas no céu da redação que, como vocês sabem, é de vidro.

***

Seu pai dizia escolher esta profissão aziaga é viver condenado ter que matar um leão por dia. Em alguns, dois.
Teimei.

***

Cartesiano, o deadline me olha procurando um lead.
Rio do quase fevereiro.

17.2.06

Retícula

Mascava horizontes feito chiclete. Cada bola que estourava era um sol se pondo.

À noite, todas as linhas são do Equador.

16.2.06

Misto-ério

Tranças tosadas
Estou saindo de suas semanas tensas
Inseminais

Antimínimo
Quasanônimo
Anfitrião de sonhos colecionados colados em postes
Sonho-me bisonho

Em três quartos de hora cultivo todos os segundos.

13.2.06

Sina repórter

No corre-corre que cansa, perdura a dúvida dependurada de ponta-cabeça pelo ponto do ponto de interrogação. Já almocei, mas meu estômago ainda reclama cada sacolejo que o caleja, machuca, raspa, contramão. Quando passava pela Doutor Arnaldo, uma menina me sorriu do lado de fora do ônibus, sonhou um senão e mascou o horizonte espelhado que as pessoas avistam nas janelas desavisadas. Desvairado, avilto. Olho sempre para a aliança que, embora prata, carrego no dedo. Decidido. Consumado. Nem tenho mais que pensar nisso tudo.

Eram dois os pêssegos da sobremesa. Semelhantes, em textura e gosto e forma a, bem, você sabe do que estou falando. Pedi um adeus. Você sorriu. Roguei até breve. Você sorriu.

De leve, pensei que você só sorrisse.

E eu, chorando, cansado, maltrapilho, jogando descalço no chão quente, lacrimejando por você. Procurando o espaço entre nós dois onde foi que eu me perdi. Experimentando a distância, cada vez maior, cada vez mais distância. Esquecendo que você não gosta de gerúndios, nunca, mesmo quando eles são aplicados de maneira correta, estética e exata.

Acendi o primeiro cigarro. A fumaça reverberando o ar embaça, desmemoria. A brasa escorre, lembra-me que também é líquida, como o ar, como a luz, como o nada. Estranho só-estar, quando o possível era estar, apenas. O abraço feito elemento contíguo esquece-se. De antemão, um vulto alenta-me que sobrados não cabem os que se escondem porões, lareiras, foguetes de São João e confetes de outras festas.

Já estava descendo a Cardeal quando contei as pombas pelo chão. Nojentas. Procurei andorinhas equilibristas nos fios da Eletropaulo, nos fios da Telefônica, nos fios... Elas já morreram, há muito. Acendi o segundo cigarro, enlutado, como se fosse uma vela pras almas. Lembro-me de minha vozinha repreendendo “e bicho lá tem alma, menino?”.

No último dia, quero me encontrar com Deus. De bloco em punho, anotarei todas as respostas que o farei dizer. Então, expurgada angústia, serei o homem mais feliz do mundo.

5.2.06

Puxão de Horário

No tapete estirado
estão
os restos
do relógio.

Porque na
Curiocidade
traguei o ócio
que trouxe
em cio
lêncio
negócio.

Cada codinome um anfitrião.

3.2.06

Pétalas

feriu-se a calma, viajou,
feriado da alma,
vício,
flor

cronos, o deus-pai
consumou o tempo
destruiu
a esperança

hoje
despetalados
sossegam ansiosos
os habitantes dos arcabouços
que nem posso
sou louco
soluço

ensimesmado
ensaio a cena
do fim.

31.1.06

[cronopolitano]

Picolé de internet, meu sorvete está aqui cheio de mentiras estranhas, gravetos que pegam fogo, sonhos mal-dormidos, segredos ao pé da cama e sinceridades pelo avesso.

O endereço tem cara metropolitana, mas soterra as esperanças construídas e depois remenda tudo com esparadrapo. Um scrap cai bem, mas o orkut virou soluço. Então leia agora.

27.1.06

Às vezes me sinto uma dobra cabisbaixa
ou uma esquina de espelho
Sem esparadrapo, nem nada
cada passo é um salto de desespero.

Onde está Wally?

26.1.06

Pessoas não são de plástico

Cansei-me de repetir que pessoas não são descartáveis, seus corpos não são de plástico, suas vidas não podem ser defenestradas sem justificativa.

Cansei-me de chorar, descer, des-ser. Cansei-me de sentimentar. Cansei-me de procurar eco no vazio das palavras. Cansei-me de tudo o que é impronunciável mas nos incomoda.

Reconheço que as almas também merecem um feriado.

21.1.06

Todo suco de tomate é vermelho e nojento, parte Emiliano; ou apenas a saga do homem que, virado ao avesso, morreu na contramão do trem das onze

Capítulo quarenta e um. A bruxa. Emiliano devorava o livro como fosse um pacote de batata chips salgadinhas crocantes deliciosas. A cada final de frase, um suspiro ou um assovio, não não, um “ufa” aliviado porque sobrevivera à trama. Todo domingo toda terça. Nos outros dias não lia não. Nos outros dias não lia nada.

Emiliano atravessa a rua devagar para que o sinal feche antes que dê tempo. Então mostra o dedo do meio para os motoristas putos que querem passar. E quase é atropelado por um motoqueiro, ziguezagueador do caos urbano. “Me vê uma Super?”, pede ao jornaleiro do outro lado da rua. E depois joga duas moedinhas de dez centavos dentro do chapéu oferecido do pedinte sonolento semimorto ao canto da sarjeta.

Avenida Paulista e a revolta dos pássaros. Onde estão os fios-poleiros os cocôs as penas os nacos de pão e os alpistes? Nos tacos de pedra que ladrilham a polêmica calçada dos solavancos absurdos às damas de salto alto, apaixonados caçam mensagens de amor, poetas tropeçam em mensagens concretas, desavisados não ligam e pisam em mensagens de paz. Paixão. Sexo. Carnaval.

Perigo da cabeça aos pés. Emiliano distraído é rendido “mãos ao alto”. Levam sua Super, sua carteira vazia com menos os vinte centavos do mendigo, levam seu bilhete único seu ônibus de volta seu múltiplo de dez do metrô seu trem selvagem. Trazem sua vontade de ir embora pra Passárgada.

Outro final de semana e a alegria é substituída pela dor. Inventamos viagens, vertigens, vacinas e vísceras. Emiliano nunca entrou numa casa de bonecas mas quando era criança via a irmã brincando. Emiliano nunca entendeu casa de bonecas travesseiro de penas de galinha pétalas murchas pratos cheios de vazio. Emiliano.

Emiliano. Quando crescer vai virar guerrilheiro. Pegar em armas. Honrar pai e mãe. Ler a bíblia e fundar uma nova religião.

Emiliano. Calça as botas e estranha a liberdade. A morte é assim? É assim? Assim?

Emiliano. Com seus dentes maciços e originais abre a boca e morde bem forte, ouve um trique, depois um traque, depois grita o hino nacional, Emiliano é homem, Emiliano não vai morrer, Emiliano não vai perder, Emiliano é o campeão mundial de desvio de obstáculos e pingos da chuva, Emiliano não é made in Paraguay, Emiliano é cabra macho sim senhor.

Brahma bem gelada. No balcão. Saúde! Saúúúde!! Saúúúúúde!!!

Sem nunca terminar de ler a bruxa, Emiliano virou herói de estimação.

16.1.06

Endereço e telefone

Sob a atmosfera terrestre, sobram sombras de nuvens endeusadas condenadas ao desuso.

Quando um mortal espirra, pronto: "atchô", e o mundo parece vir abaixo procurando uma praga para aviltamento.

Sem senões, um beijo.

15.1.06

Diáspora ao contrário

Não sei o que faço aqui. Pergunto às minhas lágrimas, que se quedam sem resposta. Eu não sou daqui. Eu não tinha que estar aqui. Meu lugar é lá longe, meu lugar é calmo, meu lugar é em paz.

Não sei o que faço aqui. Estou colhendo flores nas frestas das calçadas, estou chovendo no concreto, estou me perdendo poeta.

Não sei o que faço aqui. Se pudesse, pularia a linha ou viraria a página. Se pudesse, tomaria o primeiro ônibus. Se pudesse, ah! se pudesse, quanta coisa faria. Menos ficar aqui.

Porque não sei o que faço aqui.

12.1.06

Meu nome: Expectativa

Expectorante. Cada detalhe encabeça um alfinete que prende o botão. Uma lenda. Além da cisma do oriente, quebro-me a cabeça. Tonto. Conto até dez, noventa, cinqüenta e sete. Sento. Levanto-me e parto pra cima, porque o mundo ainda não acabou para mim.

10.1.06

Preferia não pagar pedágio da vida a condenar minha existência aos pares.

8.1.06

Quando o caos dorme

Cada respiro é um atrito.

6.1.06

Abelhas

Um curioso virou para o outro e perguntou: que que ocorreu com o curió que cada um tinha na gaiola?

Não se ouviu um pio.

2.1.06

Coisas esquecidas

Atrás do armário, a cabeça cortada. Da geladeira, três pares de meias. Do sofá, um coração duro e frio.

Dentro da gaveta, um dedo com aliança. Da caixa de sapatos, apenas um pé do par. Do forno, um pedaço de criança.

Embaixo do tapete, um monte de sujeira. Da mesa, a bola de futebol. Da cama, uma camisinha furada.

Em cima do muro, um ponto de interrogação. Da tevê, um pingüim de geladeira. Da escrivaninha, toda a coleção de miniaturas de jazigos.

No poema, um travesseiro.