14.8.06

Fruta-e-flor

Quando leio um conto travestido de crônica, ou uma crônica com nuances de conto, e nele(a) percebo pitadas de autobiografia recente (semana passada minha empregada assaltou todas as minhas jóias; ontem fiz feira e encontrei duas cenouras estragadas; há quinze anos meu pai morreu; arranquei um dente e estou sentindo, assim, um vazio...; meu terapeuta já disse: é preciso tomar uma decisão se eu quiser mesmo reconquistar o prazer de viver; e picuinhas do gênero), sou tomado por uma ojeriza estranha. Talvez porque, pessoalmente, me apeteça discutir, nesta ordem: 1) as idéias; 2) as pessoas; 3) as coisas. E, por conseguinte, porque nesses excertos autobiográficos, em geral, primeiro afloram as coisas (só como chocolates belgas; o diabo veste Prada; olha só como são belos os cristais daquela mesa; meu cachorro, ultimamente, anda amuado; e fricotes afins); em seguida, as pessoas (notou só como a Sicrana anda deprê?; você não sabe, mas o Fulano foi demitido ontem; olha, não comente com ninguém sobre o Beltrano, só que a saúde dele está capengando; lembra do Tal? Morreu!; e burburinhos etc.); e, só em casos absolutamente excepcionais, as idéias.

Em minha cabeça anuviada moram alguns idioletos, sem pé nem letos, e um isoleto que jamais entendo sozinho. Todos eles, intrigantemente, concordam com uma coisa: os textos aborrecedores autobiográficos são como um quadro de fruta-e-flor. Explico já. Na desfaçatez loquaz da ignorância artística em que resido, criei um verbete especial para definir quadros de quem não é artista, mas, por modismo, inveja ou falta de que fazer, resolve pintar o sete cor-de-rosa mesmo sem saber fazer o zero com o (então) na areia. Assim, ó:

Fruta-e-flor: Adj. [de fruta e flor] 1. Diz-se da pintura que denota imperícia artística e falta de habilidade técnica. 2. Artesanato (não-arte) feito por pseudo-artistas de forno-e-fogão. 3. Arte sem criação.

Mas hoje me reservo ao direito de pintar meu quadro fruta-e-flor. Tudo o que sempre abominei sai-me feito um bilhete à mão, cacoete ilusório de escrevente mequetrefe aprendendo a driblar as linhas. É como se fosse um dia em que acordei pelo avesso e/ou após sonhar com três urubus desdentados sobre uma inspiração cadavérica. E então quero rasgar palavras a amigos, uns lembrados outros não, que deixarei fluírem ao sabor não-hierárquico do pensamento, a seguir:

Morar em Bauru, por exemplo, não foi estúpido só porque lá algumas pessoas passaram a fazer parte de mim. Giovana, a garota que desde o primeiro dia de aula falava inglês very well, acabou se revelando uma amiga daquelas. De colega a amiga a parceira de TCC a... sócia em um futuro empreendimento de sucesso. Aguardem!

Aretha atriz com seus sonhos e medos e carinho. Laura com seu colo. Vinícius com suas tiradas impagáveis e BrinQs, o Zebra, meu dileto irmão. Juliana com imprevisíveis lembranças atemporais de Sorocaba. O Bruninho, que me brinda hoje sendo hóspede hebdomadário – momentos de vida em movimento em minha quase sempre pacata casa vazia.

E a lista poderia continuar, continuar, continuar...

De Taquarituba, carrego na memória a Gabi, primamiga com quem compartilhava versos e reversos. Iarley, presente nas incursões noturnas muitas vezes vozes repletas de desventuras. Mas lá a existência pode ser dividida em fases, cada qual com suas amizades sinceras do momento, que eu não vou enumerar aqui por preguiça – não por desafeto, juro.

Escrever dá uma saudade. Ser adulto é complicado: são responsabilidades, contas a pagar, gentes grandes pra pensar, falta de sossego, problemas. São Paulo é uma enormidade caótica, em si própria um antipoema transcendente, uma ferida sem cura, um atropelamento. Em algum momento eu ia dizer detrusor, mas agora não me lembro mais onde-quando.

Sei que, caso tivesse paciência sobrando, poderia continuar este texto por milhares de caracteres ainda. Só que não tenho. Tenho mas acabou.

E aqui finalizo meu horrível quadro fruta-e-flor.

Amém.