28.2.09

Sobre fotografias, reportagens e abraços

Uma vez me disseram para colecionar mosquinhas dessas que habitam os olhos dos míopes. Não aceitei, sob o pretexto besta de que bichos não são colecionáveis, são de quem os vir, são de quem os encontrar. Por analogia, os sorrisos também não seriam colecionáveis, posto que instantâneos, exclusivos, abrasivos.

Mas a fotografia também não é instantânea? A reportagem também não é exclusiva? O abraço, abrasivo?

Por isso, volto atrás: mesmo que o silêncio seja vidro e se quebre, carregando ralo abaixo toda sua beleza, diga algo. Diga logo. Diga. Já que não tenho como ver o sorriso, sentir o olhar, alimentar o gosto, que ao menos ouça -- leia -- o que se é existência.

27.2.09

Seção da sessão*



Isso é que era portal de verdade.

* A partir de hoje, este é o nome da seção filminho de sexta.

VINTE E SEIS DE FEVEREIRO

O futebol carrega beleza porque a bola é a representação, por rima plástica, do planeta.
A metáfora do homem com o mundo a seus pés. A metáfora do homem com a cabeça no mundo. E até, porque há os goleiros, a metáfora estúpida do homem com o mundo nas mãos.
Ainda não entendi qual é o nome do juiz.

VINTE E CINCO DE FEVEREIRO

Meus olhos são um aquário povoado por um bobo cardume de vultos, chamados "moscas volantes".

VINTE E QUATRO DE FEVEREIRO

Decidi contá-las. quando cheguei na septuagésima segunda meu globo ocular balançou e o rebanho se misturou.
Não tenho vocação para pastorear moscas de olhos.

VINTE E TRÊS DE FEVEREIRO

-- Por que não dá nome a elas?
Na época em que não quis batizá-las -- e lá se vão dez ou doze anos -- eram apenas duas. Não sabia se machos ou fêmeas. Descobri que formavam um casal. Um prolífico casal, aliás, que com uma intensidade reprodutora frenética conseguiu povoar meus olhos míopes com moscas volantes.
Hoje nem que eu quisesse daria para dar nomes às tantas moscas.

De dentro da garrafa naufragada

Estou com um sorriso derrapado no rosto. Aquele que em vez de se esquecer de acontecer, aconteceu demais, perdeu o tamanho certo, escorregou. Quando me lembrei, fechei rápido. Ficou a marca.

É assim que me recordo do seu sorriso. Indelével. Proporcional. Exato.

A matemática, eu a endeuso justamente pela medida da perfeição: a invariável condutora dos pensamentos humanos.

Por isso, me resta apenas a interrogação latente de saber como estão as coisas por aí, onde eu não vejo, onde eu não estou, onde nem sou pensado, querido ou desejado.

26.2.09

Ensaio abstrato sobre o poeta que era enorme

o poeta enorme
não tinha medo
não tinha fome

tinha só a ideia
absurda
absoluta
de que toda luta
são palavras
de que todo verso
são suas armas

o poeta enorme
não tinha rosto
não tinha nome.

Instante da estante

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Teoria do belo. Beleza. Estética. Alexander Gottlieb Baumgarten e sua ciência das sensações. Discurso? Duas formas, tiradas da fôrma: sensitivo e científico. Mas um não existe sem o outro. Como se as massas se misturassem na feitura, a pureza é impossível. “O discurso sensível perfeito é aquele cujos elementos contribuem para o conhecimento das representações sensíveis” (BAUMGARTEN, 1993:13) ou melhor, “O discurso sensível perfeito é o poema” (BAUMGARTEN, 1993:13).

25.2.09

Fábrica de ideias inconclusas, minha cabeça reverbera.

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Recuperando o conceito de Pound, ainda ressaltamos que a melopéia parece ser a mais “primeiridade” da poesia, uma vez que é som que provoca sentido. Um poema melopaico carrega sensação, ainda que numa língua estranha. Os outros, phainein e lógos são, em ordem crescente, mais traduzíveis, menos instintivos.

Um quadro às quartas

Sem título, 1998
Obra de Milena Zülzke Galli (1977- )

24.2.09

No radinho de pilha



"Take me back to my own home"

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Assim, o poema é poema, a arte é arte, porque há um êxtase quase orgasmático, chamado primeiridade, no qual o sentimos sem nos percebermos cindidos dele. Mas sempre tentamos entender o mundo, faculdade inerente à nossa condição de ser humano: tendemos a buscar o racional e, assim, matar o poema.

23.2.09

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Aí, debruçamo-nos em análises e análises. Já era o poema pleno, já era a magnitude inexplicável e energética. Agora temos a terceiridade da coisa. O racional venceu o instintivo.

Para começar a semana

"Não existe linguagem sem engano."

Italo Calvino (1923-1985)

VINTE E DOIS DE FEVEREIRO

Despertei com a saudade dos que não foram. Vesti os óculos do medo e passei o dia colecionando suspiros dentro dos espessos fios de barba. Não telefonei a ninguém.
Quando a observei, bela, nua, mão acariciando o clitóris, senti um profundo ciúme. Não sei se da mão -- que poderia estar em meu rijo membro -- ou do clitóris -- que poderia estar sendo tocado por meus hábeis dedos.
Não me manifestei. Quedei-me em silêncio, atento, só observando o tesão solitário. Com a certeza de que caibo em seus sonhos.

VINTE E UM DE FEVEREIRO

Sobre as perdas, essas pedras que apodrecem nosso caminho de tantos tropeços. Viver é acumulá-las. Cada dia mais me convenço desta verdade.
Fácil provar: dentre o seu círculo de amizades a maioria tem mais ou menos que os antepassados? Viver é perder.

22.2.09

Domingo, foto

Meu livro é uma vida aberta #1, 2003
Clique de Edison Veiga (1984- )

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Quando percebemos a existência do poema enquanto realidade exterior à nossa, enquanto tangível, enquanto ao alcance de nossos olhos e nossas mãos, enquanto objeto palpável, ainda que escrito, deixa ele de ser primeiridade. É nesse átimo mágico que ele se transforma de príncipe para sapo: vira secundidade.

21.2.09

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Se poesia é sentir, não há porque não a chamar de primeiridade, segundo a classificação de Charles Sanders Peirce. Amor à primeira vista, o poema proporciona fusão. Quando o lemos somos um só, integrados ao universo, à mente cósmica. Sensação, apenas. Aquele branco inexplicável pendurado na parede de nosso eu. Aquele indizível.

20.2.09

Filminho de sexta



DAY DREAM
Esse castelo
o que há de antigo
nosso no ar
vai se construindo
em meio improvável
desatento.
Tantas referências
nossas lentes
fora desse mundo
do vago ralo
da rapidez indiferente.
Nesse nosso castelo
vão circulando, vivos,
tantos Dukes, Claudes, Luchinos
e vários James amigos
nossos companheiros de sempre.
Sonhos aprisionados
nessa torre
ilha
correm soltos
mar de marfim
por dentro.
Dedicar cada dia
entre tantos
inúteis momentos
a refinar
cada gesto palavra cor
ou sentimento.
Nadar no vazio alheio
movidos
por nosso sonho
claro e tácido
acordar comovido
da mente em movimento.
Nesse castelo, nossa praia
essa coragem nossa
sua presença acende.
Um mundo raro
um sonho em claro
doce recheio
sem resposta.
Sonhamos
vida
sempre acordados
um sonho contrário
que se arrasta em brilho
contra a corrente.

Frederico Barbosa in "Nada Feito Nada", 1993

VINTE DE FEVEREIRO

Três minutos e já entramos no dia, com suas expectativas nervosas, seus álibis perfeitos e suas vontades -- de dormir, de ler, de ir embora, principalmente de ir embora.

DEZENOVE DE FEVEREIRO

Um homem vestiu-se de astronauta e apareceu na televisão. Perguntou a um menino o que fazia ali. Ouviu uma pontiaguda rebatida, o menino observando que o anormal ali era ele com aquela roupa que mais parecia uma armadura hodierna.
O menino foi embora para casa e contou tudo à sua mãe. Tomou bronca por seu comportamento "inconveniente". Ficou de castigo por três dias por "fantasiar com coisa séria". Apanhou forte de tanto "insistir na mentira".
No dia seguinte era julho de mil novecentos e noventa e nove e a mãe estava lá aplaudindo o astronauta saltitante na televisão. O menino, dolorido, nunca entendeu de quem era o passo pequeno e, muito menos, de quem era o gigante. Ele nem sabia o que queria dizer gigante.

DEZOITO DE FEVEREIRO

Pudesse eu escolher sobre minha sina e seria um homem que coleciona quartas-feiras. Não pela feijoada -- há também o sábado -- nem pelo azedume da semana tampouco perto do começo tampouco perto do fim.
Colecionaria quartas-feiras só pela sonoridade da palavra. O resto não é poesia.

DEZESSETE DE FEVEREIRO

Gosto do número dezessete, por uma explicação que nem sei se permanece válida ou se entrecortou nalguma esquina da vida.

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Nicolas Boileau-Despréaux, contemporâneo de Racine e Molière, seguia o modelo aristotélico: arte mimética. Parecia antecipar Pound, pois também exaltava o raciocínio em detrimento da emoção. “Ame a razão: que todos os escritos procurem sempre o brilho e o valor apenas na razão” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979:15). Mesmo assim ele reconhece a importância assaz da escolha do mais belamente sonoro: “Existe uma feliz escolha de palavras harmoniosas, fuja do odioso encontro dos maus sons: quando os ouvidos são feridos, o mais acabado verso e o mais nobre pensamento não podem agradar” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979:18). Por fim, sua máxima: “É melhor ser um pedreiro, necessário, que um escritor frio” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979:66).

19.2.09

Olha só: da série "e-mails velhos que não respondi". E nem sei mais o que responder.
Considere isto uma resposta.

Instante da estante

CERQUEIRA CESAR, Camilla. Tonzeca, o calhambeque. São Paulo: Melhoramentos, 1978.

Oco

nu, fora de foco
eu me perco
louco.

Louco

no fora de foco
eu me perco
oco.

1. Teorias de Base - Poesia, um caso de primeiridade

Melopéia é som que puxa som. É signo que gera signo numa seqüência infinita porque incabível. Melopéia gera fanopéia gera logopéia. Portanto é maior. Parece mais adequado do que pensar que logopéia é maior porque carrega fanopéia carrega melopéia.

18.2.09

Do dicionário

Infinitos
Os poemas
Desabam.

Um quadro às quartas

Casas, 1953
Obra de Alfredo Volpi (1896-1988)

17.2.09

No radinho de pilha



"Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão"

Cronos

DEZESSEIS DE FEVEREIRO

Foi logo após aprender a escrever que, já compulsivo, criei o primeiro calo em minha vida -- aspereza intragável que cultivo até hoje na parte interna do polegar direito.
O erro, aliás, foi ter pensado que havia ganho um calo. Porque viver é acumular perdas, gosto de repetir a mim mesmo.
Um calo, por definição dicionárica, é o endurecimento da pele formado em determinado ponto por compressão ou fricção contínua. Tiloma.
(Um calo, entretanto, funciona interessantemente bem como metáfora.)
Mas calo não é ganho de dureza cutânea. Calo é perda da sensibilidade corporal. E o calinho de meu polegar direito foi apenas o primeiro: depois vieram os dos pés, os das pontas dos dedos da mão esquerda (violão), etc.
Sou um homem, tristemente, cada vez menos sensível, posto que mais calejado, em progressão. Aritmética, suponho eu, para minorar o desastre.
Viver é mesmo acumular perdas.

16.2.09

QUINZE DE FEVEREIRO

Conhece a indignação? E o ódio? E a intolerância?

CATORZE DE FEVEREIRO

Já é o amanhã de ontem e sequer fui colher as tristezas que germinaram por aqui. Porque existiu um diálogo:
- Diálogo?
- Sim!
- Entre quem então?
- Isso, não sei.
- E quem há de saber?
- Dizem que há câmeras por todos os lados. E os porteiros gravam.
Amanhã vai ser um novo longo dia.

TREZE DE FEVEREIRO

Alguns dias merecem principalmente ser esquecidos, sob pena de provocarem, cruéis, dolorosas reminiscências pontiagudas.
Assim, hoje.
Um dia triste, como um carteiro escrevendo e-mail; um dia estranho, como um macaco dormindo no zoológico; um dia chato, como um platelminto.
Hoje nem merecia ter amanhã.

DOZE DE FEVEREIRO

Por serem de papel e tinta, os livros perecem. Há insetos capazes de os devorar com um apetite insaciável, maior do que o do mais frenético dos leitores.
Trata-se, aliás, de uma alimentação desordenada, que não respeita a linha narrativa escolhida pelo autor nem as vírgulas, muito menos se é de ponta-cabeça ou tudo bem.
Abro outro parárgrafo só para me conter:
- Se eu fosse livro...

Para começar a semana

"Deveriam ter aproveitado a reforma ortográfica para substituir o chapeuzinho por algo mais moderno."

Luis Fernando Verissimo (1936- )

15.2.09

Domingo, foto

Cunha, 2006
Clique de Edison Veiga (1984- )

Fragmento de um céu sem nuvens

“Vem ser vento
Que o vento sopra
Só pra vencer”


A vida, suas dúvidas, minhas dívidas. Sobra um mantra mental, uma manta invisível a proteger-nos, mente, lástima, lamentos que minto lá adeus. Ontem fui ao mercado, hoje ao cinema, amanhã quem sabe. A vida, ávida por dúvidas e dívidas. À vida, este brinde, o último, o eterno. Como se a musa fosse música e o texto, pretexto. Lua cheia. Calma aí que não quero me perder entre pedras. Atire-as. Ela tinha um cu bonitinho para eu me perder. Ela tinha uma buceta quentinha para eu me perder. Ela tinha um par de peitos redondinhos para eu me perder. Eu não tinha nada e a perdi.

Um círculo, um ciclo, uma cloaca. Clitóris. Saudades de Tamires desenhada, ideada. Tamires. Tamires.

Da segunda vez que a encontrei não havia ônibus, não havia. Da segunda vez que a encontrei não havia vestes entre nós. Era como se a semana fosse cinema e o atraso, um abraço. E abraçar Tamires, nua, escondia delícias impossíveis.

14.2.09

Retrato do jornalista quando jovem

Aos 21 anos, não é muito comum escrever uma autobiografia. Faltam cabelos brancos a guardar lembranças e histórias, faltam rugas onde a vida se inscreve, falta aquela sisudez própria de quem já levou muitos tropeços.

Semana passada, uma amiga olhou para mim e disse:

- Edison, o jornalismo nasceu para você!

Exageros à parte, tenho consciência de que todos os fatos marcantes de minha vida implicam no futuro jornalista que quero ser.

Cresci com a tranqüilidade característica das cidadezinhas do interior. Em Taquarituba (região sudoeste do estado), jogava bola na rua, brincava de gude e construía minha fazenda imaginária com bichinhos de chuchu e batata. Mas o deslumbramento vinha à noite, quando meu pai me pegava ao colo e abria um verbete ilustrado da Enciclopédia Barsa. Sem o saber, ele desenvolvia em mim a fascinação pelo conhecimento e o prazer da leitura.

E foi só aprender a ler para inaugurar o meu vício. Dos gibis e do Monteiro Lobato aos poemas de Leminski e à filosofia de Kant, foram anos entre as páginas. No meio do caminho, definia-me jornalista.

Em casa havia, no quartinho dos fundos, uma Olivetti antiqüíssima. E eu, aos 12 anos, mesmo com o computador sobre a mesa, achava que para ser jornalista era preciso máquina de escrever. Aquele charme romântico. E, idiota, corri pra desenterrar a velharia. Na volta, escorreguei no tapete e levei um tombo fenomenal: Olivetti e eu sofremos escoriações leves, mas suficientes para que eu entendesse que o computador já instalado ao canto da sala era bem mais prático para minhas primeiras aventuras com as palavras.

Quando tinha 14 anos, participei de um concurso para jovens repórteres, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, e fui classificado entre os 20 melhores. Ao voltar para Taquarituba, com o resultado, consegui uma vaga no semanário local. Começava a realizar meu sonho. Da pauta à fotografia, foram reportagens e reportagens. Em jornal pequeno a gente aprende de tudo, porque acumula funções: cobra o escanteio, corre pra cabecear e, às vezes, ainda tem que defender o gol para o time adversário.

Na 16.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no ano 2000, vi meu Enigma deixar de ser só meu. Aquele sentimento de “vai, filho, vai ser livro no mundo”. A obra foi lançada. Continuei me dedicando à literatura, nas horas vagas, o que me rendeu uma boa quantidade de prêmios e participações em diversas antologias.

Penso que todo jornalista deve cultivar uma veia leonardesca. Afinal, mesmo buscando ser especialista em determinado assunto, é fundamental possuir a visão do todo, acumulando conhecimentos os mais variados possíveis. Só assim se consegue o cultivo diário da curiosidade e o desenvolvimento necessário das diferenciadas pautas. E foi com tal ânimo que fui monitor do Laboratório de Ciências do colégio, onde aprendi muito de química, física e biologia. E fiquei em 12.º lugar na Olimpíada Paulista de Química. E fui medalha de bronze na Olimpíada Brasileira de Astronomia.

Em 2002, chegou a hora de arrumar minha tralha e sair da casa dos meus pais. Comecei a cursar Jornalismo, na Universidade Estadual Paulista, em Bauru (centro-oeste paulista). Sempre entendi que o bom aprendizado vem de uma mistura do que ocorre dentro com o que ocorre fora da sala de aula. E, pensando nisso, expandi minhas atuações o quanto pude. Durante o curso, desenvolvi dois projetos de iniciação científica, ambos fomentados pelo CNPq. Participei de todos os congressos, simpósios e seminários que me apareceram. Desenvolvi mais meu hábito de leitura, chegando a devorar quatro livros por semana.

Estive no Fórum Social Mundial, em 2003, integrando a equipe de estudantes que fez a cobertura do evento. Uma experiência inesquecível: as discussões teóricas importantes, o gigantismo do Fórum, o ar Woodstock do acampamento e a miscelânea de nações, bandeiras e ideais.

Em meus quatro anos de Unesp, dois prêmios jornalísticos: o 2.º lugar no Intercom e o 1.º no Circuito Estado de Jornalismo. Este me rendeu uma bolsa de pós-graduação (curso Master em Jornalismo para Editores).

Agora, tendo concluído as aulas da faculdade, mudei-me para São Paulo. Em busca de meu espaço. Por que quero ser jornalista? Minha história de vida é a resposta. E não pretendo que os pontos sejam confundidos com reticências.

(Escrito em meados de 2005)

13.2.09

O deus das pequenas coisas

O deus das pequenas coisas costurou um largo sorriso em mim. Para que eu jamais me esquecesse da dureza fria de sua agulha, caprichou no formato, na essência e no tamanho dos dentes pontiagudos.

Depois era o sétimo dia, então ele dormiu. Não sonhou com nada.

Lua de fel

O casamento estava um fracasso e as tentativas de "tudo voltar a ser como antes", "viver uma nova lua-de-mel", "recomeçar" e outras balelas mostravam-se desastrosas e malogradas.

- Que tal irmos para Paris? - sugeriu ele, num arroubo forçado de romantismo. A Torre, o Sena, enfim...

- Nananinanão - suspirou ela, cada vez mais nojenta e pedante. Só se aproveitarmos para dar uma passadinha em Veneza, Berlim, Viena, Coimbra e Barcelona.

E foram. Egídio juntou todas as economias do último ano (é bem verdade que ambos ganhavam bem em seu escritório conjunto de advocacia - cível, familiar), tomou alguns euros emprestados, comprou as passagens via internet e, semana seguinte, lá ia o casal quarenta a bordo. Como duas serpentes, venenosas. Ester (gorda, irritantemente gorda que estava) reclamou do assento, desconfortável para a exuberância de seus 93 quilos porcamente distribuídos por 1,62 metro de corpinho. Egídio olhava e via nela um rascunho de mulher, um esboço, uma garatuja mal-acabada. E Ester suava, em bicas; não havia ar-condicionado suficiente para aplacar-lhe a fonte da fronte.

Em casa, deixaram os dois filhos, um casal. "Já sabem se virar", pensava ela. Doze e quatorze anos, iriam pousar na casa de uma tia-avó chata, não haveria problemas, imagina. "A prioridade é tentar salvar o casamento", raciocinava ele. E logo era surpreendido por aqueles pensamentos que lhe atormentavam, a impotência, a lacuna nervosa da não-realização, a frustração da vida.

- Amooor - ela chamava.

Era só ouvir essa voz de gralha rouca para Egídio compreender porque broxava.

- Que é?

- Fecha esse jornal, que está atrapalhando a minha visão...

Seria longa a viagem. Longuíssima e entediante. No caminho, ao contabilizar as perdas (muitas) e os ganhos (ínfimos), foi cravando uma agulha de ponta fina na banha soberba de Ester. Quanto mais enfiava, mais prazer sentia­ - quase tão grande quanto quando a deflorou, vinte anos atrás. E ela, anestesiada pela adiposidade somada à arrogância de não querer se virar, nada sentia. Nada. A agulha conquistava cada vez mais o corpo imenso, um centímetro, mais meio, outro centímetro, o terceiro...

Quando ela explodiu, o barulho foi parecido com o de uma bexiga estourando em festa de criança. Seus olhos, que primeiro saltaram fora, rolaram feito bolinhas de gude por entre as poltronas. Depois os dentes trincaram e as vísceras começaram a sair pelos nove orifícios naturais do corpo mais o décimo, de autoria da agulha. O cheiro forte chamou a atenção dos senhores passageiros, que ensaiaram um vômito coletivo. Suspenso, evidentemente, quando a explosão se completou e as paredes brancas do avião foram revestidas por uma camada espessa de sangue nervoso e estúpido.

Egídio sorria por dentro. E pensava que tinha se livrado do pior acordo que firmaram na vida: tê-la como advogada e, ao mesmo tempo, advogar por ela. Na audiência referente ao divórcio, óbvio.

Filminho de sexta



L'uomo e la macchina.

12.2.09

Instante da estante

BANDEIRA, Pedro. Pântano de sangue. São Paulo: Moderna, 1995.

A volta das abóboras telúricas

O colecionador de abóboras decidiu também plantar gnomos. Os nove, lá da história do arquivo.

Frase intro

O espinho, parte 17. Quem me dera fosse adrede o cutucão.

11.2.09

Um quadro às quartas

Bandeirinha, 1958
Obra de Alfredo Volpi (1896-1988)

ONZE DE FEVEREIRO

Queria muito saber a senha para esse sorriso tão bonito e raro.

DEZ DE FEVEREIRO

Dói-me uma árvore agonizando no quintal do mesmo tamanho que me dói a ausência dos familiares queridos, trezentos e tantos quilômetros apartados de mim.
Emociono-me fácil com perdas. Só não me expresso muito bem. O que, por si só, já é uma perda.

Cronopolitano

Saber esperar e depois pintar o seu retrato. Depois dependurar na parede, botar no lugar do espelho, considerar que a tela é mais generosa do que o mau-humor do espelho, saber do retrato, pensar que se é o retrato.

Vida era uma tristeza sem fim.

Quando se olhava ao espelho, o que via era apenas cronopolitano.

Cronopolitano não é sabor de sorvete nem marca de esparadrapo. Muito menos nativo de alguma cidade de nome estranho. Cronopolitano é um não-lugar que existe nos navegadores de internet. Qualquer um deles. Estando on-line, basta que se digite cronopolitano, precedido de três dáblios e um ponto, e sucedido por outro ponto, um blogspot, outro ponto, um com. Assim: www.cronopolitano.blogspot.com

Mas, como ia dizendo, ela era uma tristeza sem fim, feito cronopolitano. Tinha seus segredos, bem-guardados no sótão. E aquele gosto de fiapos de manga amarelando a boca.

Sim, vou apresentá-la. Vida era seu nome. Não, não era apelido. Nome mesmo. Você já deve ter ouvido a expressão "vidinha da silva". Então, anota aí: Vida da Silva, idade: 46; estado civil: divorciada; RG: XX.XXX.XXX-X; CPF: XXX.XXX.XXX-XX; etc. etc. etc.

Sem pretensão salarial.

Sem objetivo.

Sem cursos de pós-graduação.

Sem sorte, nem talento.

Ao lado do telefone, Vida exercita o saber esperar, saber esperar, saber esperar. Até que o retrato na parede desbote, seu quadro na parede acabe virando espelho.

Enquanto isso, www.cronopolitano.blogspot.com

10.2.09

Medos

  • Morte;
  • Elevador;
  • Avião;
  • Escuro;
  • Você.

Link legal

Bicicleteiros e bicicletistas do mundo todo, uni-vos.

No radinho de pilha*



"I'll say the only words I know that you'll understand"

* A partir de hoje, este é o nome da seção terça sonora.

Conjunto vazio

Na mesa, o prato vazio denunciava que as idéias estavam ficando velhas. Velhas, tristes, cansadas. Estevão era um lamento. Esther era uma lágrima. E as crianças brincavam no sofá da sala. As crianças nunca entendem nada do mundo dos adultos.

- Mulher, café!

- Quedê?

E o silêncio ecoava por todos os cinco cantos da casa.

***


Quando os cabelos começassem a cair, Estevão sonhava já ser um publicitário reconhecido. Detentor de dois Cannes, no mínimo. Eu disse dois? Ahaha... Detentor de oito Cannes. Nove, talvez.

A sua estante continuava vazia. Vinte anos depois, a estante vazia. Sobre ela, apenas uma placa com uns dizeres de reconhecimento. Dos formandos da faculdadezinha particular meia-boca onde ele leciona para completar o orçamento.

***


Tem aquela famosa frase que diz "se arrependimento matasse...". Pois se arrependimento matasse, seríamos todos convidados a velar pela alma do pobre Estevão. Porque quando ele recebeu a proposta para trabalhar no exterior não quis abandonar família. Tinha medo da cama vazia.

Agora Esther ameaçava abandoná-lo, levando junto os três meninos. Porque a crise ruiu tudo: amor, amizade, paixão. A crise é um diabo loiro que come a vida da gente pelas beiradas.

E Esther quer outra vida, outra cidade, outro apartamento... Esther quer outro homem.

A Estevão, a promoção: do sofá para a cama vazia.

***


Neste instante em que são três da madrugada e sua única e última companhia é a televisão fora do ar, Estevão torce para que o relógio parado não seja por falta de pilha. Porque ele acredita que no post-mortem as horas fiquem estáticas.

9.2.09

NOVE DE FEVEREIRO

"Nada como um dia após o outro", costuma repetir meu pai quando o mar não está muito para tainhas.
Ele sempre tem razão.

Para começar a semana

"A literatura me mudou. Sempre que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu jeito de pensar."

Antônio Torres (1940- )

OITO DE FEVEREIRO

Tirante a chuva e a dor de barriga, tudo bem. As plantas, já em seus lugares, fotossintetizam animadas.
Ensaio um diálogo.

SETE DE FEVEREIRO

Sou um jardineiro óbvio. Planto, colho. Semeio, rego. Observo, podo. Posso, sou.
Jardineiro? Sou um agricultor óbvio. E todos as tardes, a partir de hoje, irei me dedicar à lavoura que ora começo em minha sacada.

Ela

Era pregressa e, portanto, já nascera condenada a ruminar reminiscências nada aprazíveis. Troglodita, mas não poliglota, amaldiçoava os idioletos irreversíveis e sonhava com as vivências de antemão.

Havia sido de tudo: secretária, aeromoça, modelo, professora da quarta série, bióloga, curadora da exposição do Picasso no Brasil, jardineira e aquela mulher que se queda na janela com um sorriso natimorto a contemplar a efemeridade do cotidiano.

Quando completou certa idade, cismou de ser atriz. Assim, enfeitando a existência de personagens imaginários, conseguia se tornar mais semelhante aos seus semelhantes, por mais irônico que possa parecer. Não carecia salário; só o ser lhe bastava. Ficou nessa por quatrocentos e vinte e dois dias, até que tropeçou numa pedra grande e, ao bater a cabeça no chão ou no cabo de uma enxada, lembrou-se que estava enjoada de tudo e bom mesmo era ser astronauta.

Pisou na Lua em 1969, vestindo pesadas roupas que flutuavam. Retornou com a boca ressequida pelo trauma do sabor cumprido e a ressaca do prazer experimentado. Era uma bela história, que certamente seria compartilhada, contada e recontada a seus filhos, netos, bisnetos... Se herdeiros ela legasse ao mundo.

Nos tempos de faculdade, passou o curso todo na necessária porém entediante função de organizar a sala em equipes, em grupos, em duplas, em unidades, sempre para promover seminários, debates, solilóquios, elucubrações, partidas de pingue-pongue, campeonatos de truco, bacanais (que, etimologicamente, são idênticos aos seminários!) e afins. Como prêmio e mostra de reconhecimento, foi laureada com um diploma de bordas douradas. Extremamente démodé em seu figurativismo desprovido de apuro estético, mas é inevitável ressaltar que ela derrubou lágrimas emotivas durante a cerimônia.

Na Queda do Muro, ela foi a pedra. Depois o vãozinho, depois o cimento, depois o chão. Nas eleições, ela foi o xis, depois o branco, depois o nulo, depois o botão verde. No conclave do Papa ela foi o senão, o porém, a chave.

Ela sempre esteve presente, como vítima, como protagonista ou como figurante, em todos os momentos da História.

Em seu primeiro emprego, apaixonou-se. Chamava-o de Mor, mas seu nome era Morte. Ele era um pobre desdentado, responsável, na empresa, pelo ingrato Departamento de Conserto de Clipes Destroçados. Desdentado, desvalido e feio. Vestia preto o tempo todo, que, segundo o próprio, era para "poupar tempo na escolha". Na verdade se tratava de recurso para que ninguém reparasse no irrisório número de exemplares de seu guarda-roupa.

Em seu primeiro emprego ela era bailarina de enfeite. Ficava na mesa do chefe e dançava quando ele ligava a caixinha de música. Ele sonhava com ela. Ele não sabia que ela era só do Morte. Ele não sabia que ela teria o Morte como revés, como companheiro, como indissolúvel, como alma gêmea, por toda a eternidade. Ele não sabia que amar era esse se completar onde um só é possível sendo dois.

Ela gostava de cozinhar mas nunca sabia direito a porção de água pra cada naco de arroz, ou o inverso, ou o desverso. Recitava versos sobre as panelas, como se as rimas fossem de feitiçaria. O marido não dizia nada, fingia que acreditava. No fundo compreendia a essência de ser marido.

No acordar era doce. No dormir, selvagem.

No soluço era um sossego. No orgasmo, um desespero.

Cabiam em si todas as antíteses, desde as mais gastas até as mais belas.

Poderia se chamar Poesia. Mas seu nome era Vida e, cheia de surpresas, aceitou ser capa da Playboy aos 47 anos.

8.2.09

Coceira

Cansaço.
Correria.
Corpos.

Acerca dos cafés da empresa GR, em um plantão dominical, e suas cruéis reminiscências mundanas

Desando a colecionar cafés amargos. Uns tristes, outros frios. Uns quentes, outros amanhecidos. Uns frescos, outros alegres.

Quando chego ao trigésimo segundo gole -- a contar desde a primeira até a décima xícara, em média --, bate uma irresistível vontade de vomitar. Não só o líquido negro e amargo misturado à amarga e ácida bile. Não só.

A vontade, que não passa, é de vomitar a vida. Para que ninguém mais consiga reconstitui-la.

Domingo, foto

Congonhas, 2008
Clique de Angelo Pastorello (1959- )

Passa perto!

thaís entrava no banco de trás e trazia um papel amassado na mão. estava triste, a deglutição matinal de seus sonhos não fora tão boa como de costume.

::thaís tramava viajar para longe, e sabia que o táxi era apenas o começo. depois viria o check-in, o avião, os porquês, a alfândega, o barulho todo, as nádegas doloridas. o táxi e o taxista de bigodes felpudos era só o começo de um trajeto rumo ao front.

::thaís era a rainha das predileções: queria de tudo, desde apertar o botão do elevador até tocar violoncelo. só não queria era começar outra vez o que já dera errado por nascimento mesmo.

::thaís trazia no papel amassado o endereço de um homem importante que morava no final de sua viagem. ele calçava sapatos lustrosos e trabalhava sob a forca de uma gravata listrada. não tinha filhos nem tatuagem, mas sua motocicleta fazia um ronco inconfundível.

::thaís não gostava de carregar bagagem e sua vida era uma infinitude de desapegos e choros. a cada momento, novidades; em cada porto, um canto e uma ilusão.

::thaís tinha o rosto de quem brilha, o corpo de quem crê, a alma de quem sabe e o coração, ah, o coração de quem é. mas não sabia sambar e estava muito longe de ler neruda. era antítese do medo e certeza do segredo.

::thaís sentiu que, nos seus dentes, ainda havia restos do café-da-manhã. passou a língua pra disfarçar, ao que o motorista espiou pelo retrovisor. ela escondeu instintivamente o decote.

::thaís sorriu.

::thaís sorria.

::thaís era daquelas mulheres que não tinham passaporte.

7.2.09

Com os 21 olhos do Aurélio, amo-te

1. Anat. Órgão par, em forma de globo, situado um em cada órbita, constituído de três camadas (esclerótica, coróide e retina), e de meios de refração (humores aquoso e vítreo, e cristalino). É o órgão da visão.

Grato todo dia por tê-los aos meus. Um em cada órbita e minha cabeça fora por ver-te a ti. Verto versos, sou órgão musical: o resto é a tua imagem em minha retina, retrato invertido o amor que sou.
Discretos, sob óculos. Só a ti se revelam profundamente no encontro de momentos íntimos. Só a ti se descobrem sempre-verdes, puro reflexo dos teus em mim.
Olho, olho. Dois que viram quatro, sem lentes. No impacto de sermos únicos. Único, no singular. Quatro que viram um. Vimos.

2. Percepção operada pela visão; olhar, vista.

Gosto de acordar quando estamos juntos, só pra ter o prazer de ver-te em meus braços ao despontar da manhã. Teu dormir em simbiose ao meu despertar, tuas pálpebras pedindo um beijo doce, tua face rimando com um acalanto.
Gosto de traduzir-me em visão a completude de teu corpo. Observar-te é um exercício necessário, atiça o "eu" que me há, ataranta os meus olhares, tenta-me. Antecipo assim o que virá, sempre que nos vemos. Veremos.
Percebo-te com os olhos, meninaminha. Sempre te percebi assim, em verdade. Como se cego não soubesse enxergar teu interior puro amor.

3. Fig. Atenção, cuidado, vigilância.

- E quando eu for velhinho e, de miopia cada vez pior, vista cansada, presbiopia e o cacete, virar-me em interrogação para ti, logo ao despertar: "amor, quedê meus óculos? Ajuda-me a achá-los senão não me levanto!"? Porque hoje é bonitinho, somos novos e é bonitinho... Quero ver quando a convivência nos enjoar, que é que vais fazer...
- Vou dizer: "pera que já pego, meu amor, pera. Primeiro tenho de achar os meus".
(Na garganta, um nó).

4. Fig. V. olho vivo.

Coleciono cenouras. Umas mais alaranjadas, outras mais astutas. Coleciono cenouras, de diversos tamanhos e raças. Na verdade, cenoura não tem raça: tem é marca. Marca? Meu avô diria "esta é de uma qualidade diferente dessa". Meu pai diria "variedade". Eu? Prefiro grifes.

5. Fig. Aquilo que distingue, percebe, guia, esclarece.

És o meu manual de instruções. Tens o afago que preciso pra conseguir dormir. E possuis no peito um travesseiro de penas. De ganso. Não posso me esquecer dos ombros, praticamente um par de guarda-chuvas prontos pra funcionarem. Inquebráveis.
Minha vida contida no teu reflexo. Meu futuro em tuas linhas. Centralizado. Melhor: justificado. Mas sem porquês, que essas coisas não se explicam.

6. Fig. Indício ou manifestação dos sentimentos ou do caráter.

Quentes como um abraço, assim se olham os nossos olhos. Quando consigo, distancio-me de mim mesmo e fico observando nosso flerte arrebatador e eterno como se fosse outro alguém, um admirado pelos corações enamorados, torcendo por happy ends.
Outros momentos, o sentimento vem tão forte que a troca de olhares é instantânea, partindo de imediato para a manifestação plena de tanto amor.

7. Abertura arredondada; orifício, furo.

Meu queijo por um beijo. Suíços.
Mas tem também o que se descobre poder, o que se esconde pra ser, o que se sente no entre. Dois passos e uma atitude. Entrega.

8. Biol. Ocelo.

Jamais entendi muito bem aquelas mentiras da biologia que nos ensinaram no Ensino Médio. As histórias, pra mim, eram repletas de incoerências e vazios lógicos. Jamais entendi, desculpe-me professora Tânia.
Mas nunca me esquecerei de quando minha foto deturpada no computador foi por ti chamada de mitocôndria, ácido desoxirribonucléico ou outro fragmento que agora não me vem. Nunca me esquecerei. Obrigado.

9. Pequena saliência de forma arredondada.

Desde que a ele fui apresentado, não passa uma noite sem que a sua lembrança se me ative na memória iridescente de meus vinte anos. Tens; ofereça-me. Não te arrependerás. Tampouco eu.

10. Bot. V. gema.

Quando virmos rebentarem os nossos, como um broto esquálido, será tempo de contemplarmos um ao outro e ao outerceiro.
- O milagre da criação!

11. A parte central de certas hortaliças.

Cenouras, milhares delas, cada uma de um tamanho diferente. Mas pra horta ser completa preciso também seria um pouco de alface, pimentão, berinjela e rabanete. Couve-flor, repolho, brócolis. Almeirão.
Eu pensava que cenoura não era hortaliça, que hortaliça eram somente as verdejantes. Mas o Aurélio sempre me puxa as orelhas. Intransigente.

12. Arquit. Óculo.

Um corredor gigante, infinito, cheio de janelinhas observando-te. Portas uma ao lado da outra e percorres o espaço todo, partes, labirinto que sou, correndo. Corres, corres, corres, e acaso me domina um pensamento se é por mim que corres, se pensas vir ao meu encontro, se te amo tanto. Corres, corres, corres, e no arcabouço de minha imaginação as pessoas usam patins.

13. Olho-d'água.

Quando larguei as rimas, lágrimas foram junto. Elas não escorrem mais, desaprendi.

14. Jorn. Intertítulo ou subtítulo de três a cinco linhas.

Tomei umas três horas e cinco dias só para pensar numa palavra e/ou expressão sintética onde coubesses. Amor era pequeno demais, posto que só quatro letrinhas. Felicidade era insuficiente, já que vivemos a plenitude dos sentimentos, bem como sua qualidade irrefutável de não se acabarem. Decidi. Desisti: por que palavras se teu olhar já me basta?

15. Marinh. Cada um dos furos de qualquer poleame surdo por onde passa o cabo.

Terra à vista que nem amor à primeira.

16. Tip. A parte do tipo que imprime, constituída pelo relevo da letra fundido no entalhe da matriz, e cujo tamanho pode variar dentro da mesma força de corpo.

Em teu corpo, em meu corpo. Marcas indeléveis feito tatuagem cama-coração.
- Amo-te.
- Somo-te.
- Sou-te.
Nós dois, inventando transitividades para transitarmos na estaticidade de um amor perene.

17. Tip. A estampagem da letra, deixada na matriz pelo punção.

O prato à minha frente, sopa de letrinhas, gasto dedicação e fome formando seu nome com o macarrão. Paro e contemplo a brilhante tarefa. O prato à minha frente, sopa de letrinhas, gasto dedicação e fome formando um verso com seu nome de macarrão. Paro e contemplo a brilhante tarefa. O prato à minha frente, sopa de letrinhas, gasto dedicação e fome formando uma estrofe com o verso de seu nome de macarrão. Paro e contemplo a brilhante tarefa. O prato à minha frente, sopa de letrinhas, gasto dedicação e fome formando um poema com a estrofe do verso de seu nome de macarrão. Paro e contemplo a brilhante tarefa. O prato à minha frente, sopa de letrinhas, gasto dedicação e fome formando um grandioso livro com o poema da estrofe do verso de seu nome de macarrão.
Como tudo, estômago apetita poesia.

18. Tip. P. ext. Superfície impressora de outros materiais tipográficos, como fios, clichês, etc.

Eu te amo, o mais sincero de todos os clichês.

19. Tip. A área fechada do e, que o distingue do c.

Diferenças homem-mulher. Um tratado acerca das.
Deitar, dormir.
Brigar, blablar.
Comer, começar.
Evitar, estar.
Amar, amor.
Diferenças homem-mulher. Completudes.

20. Tip. A parte superior do tipo, que apresenta o caráter em relevo.

Tipassim: nossos nomes gravados, a canivete, no tronco dum ipê-roxo. Ou de um jacarandá mimoso, tanto faz.

21. Atenção, cuidado, cautela; olho vivo.

Fica ligada porque amanhecerá um dia em que ao despertar perceberás que estou em tua cama. Então, olhando em derredor, te lembrarás que a cama é grande demais para ser só sua. Aí, pode ser sorriso, pode ser arrependimento; de nada mais vai adiantar: esta mercadoria desteladodecá não é daquelas que permitem devolução.

6.2.09

SEIS DE FEVEREIRO

Desando a ter vontade de copiar imagens metafóricas. Das deliragens da língua, banqueteio-me. Tenho uma caixinha vermelha e azul de primeiros-socorros. O que primeiro socorro é o coração da menina que saiu armada de inutensílio e gritou, gritou até estrepar a alma. Passo gaze e língua, recito três versos inéditos raros e assopro ventinho de borboletas.
Que gosto tem a alma?

CINCO DE FEVEREIRO

Os que têm pernas curtas devem tropeçar mais facilmente. Foi o que me disse ontem o dono da semana, com seu olhar retilíneo, uniforme, abstrato. Doente.
- Quer colecionar mentiras?
- Só se forem bonitas.
No mundo dos anões, as estrelas todas já morreram.

Filminho de sexta



Ho-ho-ho, feliz Natal!

Claridades

O ócio acende a luz.
O cio ascende-a.

***


Era uma vez um facho de luz que queria se tornar feixe de laser quando crescesse.

- E quem disse que luz cresce? - dizia o seu pai Sol, bonachão, e dava-lhe um croque na cabeça.

Mas o fachinho insistia. Insistia. Insistia.

Num belo dia de chuva, acordou assustado. Tinha virado meia-sombra.

***


Bola de meia e a meninada meia-sola disputando outra pelada à meia-tarde.

***


Depois de mais uma meijoada, Meire estava meio enjoada:

- Doutor! Me perdoe! Eu juro que não estou grávida!

***


Confesso que sempre é difícil chegar a um consenso.

Para ela, sexo só à meia-luz. Ele prefere com a claridade plena, o quarto cheio do clarão, o ver dos corpos, as faces do prazer se mostrando claramente.

Para ela, sexo só à meia-luz.

Para ele, nada como a meia-luz para tocar sax. Sozinho.

***


Meia-idade, meia-lua, meio-a-meio.

Medíocre, intermezzo.

Meio-dia. Meia-noite. Meias-verdades.

Meias furadas, meio cansada, meio do caminho.

Mês-a-mês, mesóclise. Mesa. Meio-aliche, meio-mussarela. Não, não: meio-calabresa, meio-quatro-queijos. Meias sujas ou mal-lavadas.

Meio inteira.

À meia-luz.

***


Tinha também aqueles versinhos bobos de "o sol prometeu pra lua patati-patatá", respondido por outra menina com "e a lua prometeu pro sol blo-blo-bló, bla-bla-blá".

Eu preferia a noite. Só pra apagar a luz e, da janela, ficar uivando pra lua cheia.

Desconfio que sempre fui meio lobisomem.

***


Preparei a meia-légua e acertei o bandido de meia-figa
(porque figa inteira ele não merece, claro que não!).

***


Éramos em meia-dúzia mais o pé-de-meia. No meio da jornada um virou cientista:

- Inventei a meia-espessura!

Os outros cinco olhamos, boquiabertos:

- Que maravilha! E seguimos com nossa labuta. Foi quando um outro comprou diploma de engenheiro e desatou a...

- Vou trabalhar com meias-esquadrias.

Os outros quatro olhamos boquiabertos2:

- Noooooossa! E seguimos com nossa labuta, cabisbaixos. Até que um outro outro comprou uma supermochila e saiu gritando:

- Virei alpinista! Estão vendo aquela meia-laranja? Pois amanhã mesmo começo a escalá-la!

Os outros três olhamos boquiabertos3:

- Oh! Oh! Oh! E seguimos com nossa labuta, mais cabisbaixos ainda. Mas logo depois um outro outro outro exclamou:

- Caríssimos: o amor esteja convosco. Quem dentre vós tiver coragem, tomai uma veste de meia-lona e vinde comigo.

Os outros dois olhamos boquiabertos4. O outro outro outro outro virou discípulo e escafedeu-se. Eu sobrei à meio-vôo, só pra lhes contar a história, afinadíssima com todos os seus meios-tons. O pé-de-meia, agora, é só meu.

***


O cio vem à meia-luz.

***


Evidente que a clarividência pertencia, incólume e irrefreável, à Clara. Como a clara era do ovo, o ovo da galinha, e a Galinha, filha de uma puta, era a mulher do corno do Seu Onofre. Também... com um nome desses!

***


Galinha vestia meia-coronha naquela noite em que a penumbra denunciava a indecisão da luz em alumiar as almas. Os postes, um sim, um não, falhavam - coisa de interior fugidio.

"Uma meia-lagarta por aqui seria deveras estranho", pensava eu, narrador-personagem, infiltrado na trama e escondido detrás de um poste apagado.

Até o roteirista sacar a borracha e também me apagar da história.

***


Desenhei uma rosa-dos-ventos e oferecia cada meia-quarta a uma de minhas namoradas, como se eu inventasse um buquê ao contrário, como se eu criasse um ramalhete de pessoas para uma rosa em especial, como se as mulheres todas fossem melhores, não chorassem espinhos e cheirassem bem. Todas elas.

***


Meia meia meia. Meia-entrada, meia elástica, meia-encadernação.

Meio-campo, meia-armador. Meiágua. Meia-irmã:

- Meia-final, meia-estação, meia-esquerda! Meia-direita...

Meia-cara, meia-cana. Cara-metade.

Meia-cancha? Meia canha: meia confecção, mea-culpa.

Meia-colher, meia-tigela.

Meia-noite e meia. Meia-hora.

Meia-calça. Pela metade. Meia-manga. Meia-luva.

Tudo em meias-claridades.

***


A meia-rédea percorri a meia-rotunda do globo. Mas tudo fora meia-tinta, pra dissuadir os meias-praças que buscam as riquezas de minha dentadura.

***


Por meia-pataca, a meia-pontense abriu-me a meia-porta de seu coração tríptico: pai, filho e espírito santo.

***


Meu amor: apanhe sua meia-máscara que amanhã é carnaval!

5.2.09

Instante da estante

TORERO, José Roberto; ZARAGOZA, José. Zaragoza: olimpíadas e futebol arte. São Paulo: J. J. Carol, 2008.

Dúvidas

  • Quem te fabricou a beleza?
  • Com quantos sorrisos se faz este olhar brilhante?
  • De onde escorre tanto amor?
  • A invenção é perfeita ou ninguém sabe de onde veio?
  • Por que andas tão distante?

Confusões

Todo dia eu sou engolido por uma caixa que me vomita no térreo. Já ela desce escadas surrealistas mas enfrenta o mundo com as asas arrastando no chão.

Todo dia eu penso pensar que o pensamento pensa na gente. Já ela prefere ser concreta: quem roubou meu coração?

Todo dia eu tomo café com pão com jornal cheio de notícias de morte política futebol cultura tudo mesmo. Já ela assiste pela TV a novela da guerra.

Todo dia eu

***


Confissões arquivadas: "Meu aniversário de 19 anos, que acabo de viver, foi o mais estranho de todos. Decididamente o mais estranho. Estranho e recheado de mortes. O que explica o fato de eu estar agora escrevendo este e-mail pra você num Word 6.0 (aquele pra Win95, manja?) muito tosco e desconfigurado, que fica dando mensagens de erro a torto e a direito com aquele apitinho ensurdecedor e renitente. E já é a segunda tentativa. O primeiro texto, quase pronto, foi pro espaço porque esta jurássica máquina desgraçada travou. E o teclado, maldito, é modelo americano - estou apanhando pra catar os acentos e cedilhas da vida."

***


Estava pensando sobre a pequenez da vida quando:

- Cataploft, vamos tomar café?

- Sim, Catapluft, vamos sim...

- Mas onde, Cataploft, onde?

- Ora, Catapluft, mais acima, mais acima...

- Não estou entendendo, Cat...

Cataploft! Olhando para cima, foram surpreendidos com uma rasteira. Era o Sr. Cobra, o chefe da empresa, aquela víbora que não permite conversas paralelas muito menos universos assim.

***


Confissões rasgadas (ou A Morte Número 1): "Noite de ontem, 29, sexta. Eu entro no carro, carona. Nota de falecimento, coluna de obituário: "o vô da Sicrana morreu hoje cedo". Como assim? Tão novinho, apenas 97 anos, flor da idade...

Sicrana é velha amiga, estudou comigo nos velhos tempos. Agora está em Londrina. Ou Sorocaba. Ou Paris, não sei ao certo. O que sei é que ela está. Em algum lugar, a Física garante. O certo é que teria de passar no velório, ao menos um pouquinho, cumprir aquele ritual de praxe instituído em nossa sociedade pequeno-burguesa pós-capitalista. Pelo menos os meus pêsames, as minhas condolências, etc. etc. etc.

O problema é o frio que me acomete nesta cidade que já não é mais minha. Meu corpo habituado ao inferno e aqui quase neva. Meus dedos agora, por exemplo, tropeçam trêmulos nas teclas porque está frio. Por isso cheguei aqui e não fui ao velório. O presunto que esfriasse lá mais um pouquinho, pois eu só vou cumprir minhas obrigações com a sociedade que insiste em viver pra falar mal dos outros amanhã, bem cedinho. Aí posso acompanhar o sepultamento, ainda que seja meu aniversário."

***


Uma vez eu fugi do útero da minha mãe só pra ver onde é que o mundo ia dar. Depois o relógio começou a girar girar girar sem lógica mesmo e eu cresci um homem com barbas escorregando pelas costas da imaginação porque me barbeio todo dia na verdade.

Conheci o amor numa noite inusitada. Foi como se num instante o que era átomo tivesse virado átimo. Ótimo.

E agora é assim...

***


Confissões pagãs (ou A Velhinha): "Foda mesmo foi acordar às 8h, tomar café e enfrentar o frio da manhã pensando em não chegar atrasado para o enterro. Legal isso, começar o aniversário com um enterro! Foda mesmo, aliás, foi sair da minha cama quentinha...

Vamos lá. No velório aconteciam os últimos preparativos para a marcha fúnebre que sairia em pouco tempo. Alguns vereadores tentavam roubar a atenção de amigos e familiares, certamente já pensando nas próximas eleições. O prefeito e a primeira-dama fingiam semblantes tristes. Uma das noras do falecido trajava um falso luto. Enfim, muitos figurões da sociedade estavam lá. O cara que morreu era importante: um grande fazendeiro. Toda a burguesia hipócrita de Sucupira estava lá. Metade de Sucupira estava lá.

E eu, pé-rapado, barbudo e maltrapilho. Apenas por consideração às netas, que são capítulo a parte.

Como era de se imaginar, dezenas de coroas caríssimas eram carregadas pela burguesia rica. Ou pelo menos que finge ser rica. É muito chique acompanhar o féretro carregando coroas perecíveis para depois jogá-las no defunto. Deve ser, penso eu. Coroas caras e caretas carregadas por coroas chatos e cornos.

Mas meu olhar se desviou rapidamente para uma velhinha. Ela carregava uma
mísera rosa. Não dessas rosas de floricultura, que vêm envoltas num plástico que termina em eno na química inorgânica. Não, ela carregava uma rosa colhida talvez no jardim da praça, talvez em seu próprio jardim. Fiquei pensando que a velhinha podia ter cultivado aquela rosa para uma ocasião especial, e me emocionei.

Fiquei imaginando quem seria aquela velhinha. Pelas roupas, parecia ser bem pobre. Pela aparência descuidada, também. Ela destoava um pouco do público que acompanhava o sepultamento. Carregava a rosa entre as mãos, entre os dedos, como se a rosa fosse se quebrar, como se as pétalas fossem se desprender, se desgarrar, se despetalar. Como se os dedos também fossem voar. Eu fiquei comovido e não consegui parar de olhar aquela velhinha cujo olhar estava embotado de um quê seco, parecia que tinha sede e nunca mais ia conseguir chorar. A velhinha tinha os olhos calejados pela vida. Jurei pra mim mesmo: um dia ainda vou escrever uma crônica, a mais linda crônica, sobre essa velhinha e sua rosa para um defunto. Ainda pretendo cumprir o juramento.

Mas qual a relação da velhinha com o velho morto? Não conseguia parar de pensar. Amor? Amizade? Paixão platônica? Paixão fulminante? Gratidão? Favor? Creio que nunca vou saber. Aliás, nunca vou querer saber para não quebrar a poesia de vidro desse momento inesquecível.

E foi bonito ver a velhinha jogando sua rosa por cima do caixão, quando este ia sendo coberto de terra. Foi muito, mas muito mais bonito do que aquelas imensas coroas sem coração. Aquelas coroas de gente hipócrita."

***


Minha obra brota bruta. Só depois de muito britar é que se abre e cadabra. Então acaba.

***


Confissões amarelas: "A outra morte daquele dia foi extremamente trágica. Meu computador antigo, meu Pentium 100 tão íntimo, teve morte cerebral."

***


E tem aquela do cara que sempre acordava com a cara virada do avesso. Aí teve um dia que ele pulou fora do espelho e começou a viver de verdade.

4.2.09

QUATRO DE FEVEREIRO

Odeio não cumprir planos, adiá-los, fugir deles, inventar álibis, semear segredos.
Sou uma farsa ou um falsário?

TRÊS DE FEVEREIRO

Eu era um garoto imberbe -- e imbecil -- quando lancei a marota ideia de me tornar um jornalista de patas longas, lides bonitos e gravador moderno para a época. Meu pai, com a sempiterna sapiência que lhe é peculiar:
- Você é quem sabe. Mas terá de matar um leão por dia.
Hoje sei bem. Os leões muitas vezes são nervosos, tem dias que vêm sorrateiros, noutros atacam rapidamente ou correm rápidos em fuga.
E aquela história de que o prêmio uma vez é da caça, outra do caçador não funciona. É preciso sempre conseguir matar o que tem a juba mais sedosa.

DOIS DE FEVEREIRO

Religião tem tanta lógica quanto os ponteiros do relógio. A lógica a que nos acostumamos. A lógica do conforto. A lógica da certeza, da fé, do óbvio. A lógica da aliteração bonita provocada pela primeira frase.
Por isso que a discutir esbarra na latente impossibilidade de desnudá-la. (A fé, lembre-se, não suporta uma cortina aberta ou uma fresta debaixo da porta.)

Um quadro às quartas

Ferdinand Guillemardet, 1798/99
Obra de Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828)

Memórias do calabouço

Vim par ´ca ja´ fazalgun temp o. Naõ sei dixerbem ao certo qanto. Sei q ue faz un tempo e seeu vise a luz dosol nasc endo e sepondopoderia precisra os dias dest agonia agora agonia agora

.

No cmeço afastavameu deli´rio cmo um imagina rio jog uinhodepaciencia. As cartas ,tods marcdas- e eu invariavlmente predendo pa mim msmo . Dpois qeu me canseei, dcidi usarasmesmas cratas pra construiir un castelllo gigatne do qual euera o rei, o absoluto, o unico com poders na mihna corte de eu sozinho .

Foiamel hor fase. /mandava em mim cmo ningúem :era sehnor domeu instetino, donodos meus insta^ntes de oslidão , pincipe regente autoritarioe general-mordo unico exx´ercito d minah mente -qeu se cama 'conxciência" e, oje emdia, anda meiofora dee moda.

Sndo rei, derotei; vencci e ameiechorei ,rei sendo.

.

Estva dentro do castlo quadno oven to voou baixihno ederru bouu tdas ascar tas. Oteto desabbou tao rs´pido qeu morrilá msmo pelaprim eira vez. Ate´acordaroutra vez.

Eonde maiss podiaestar que naõ aqiu? Preso ,pesemãos atadas, so´a cabeça easid éias e´ qie não.

E e´ com acanneta entreos dentes q ue inicio asssim as mihas memorias . Se aomenos

alguém acendesee a luz, ah! , tdo já´ ficaria bemm maisfácil.

3.2.09

Interatividade

Toc-toc-toc. Tem alguém aí?
os desafios não existem mais porque os deuses os inutilizaram.

Terça sonora



"Já de saída minha estrada entortou
Mas vou até o fim"

Pró-visão

Com triste dor percebo que as pessoas trabalham enquanto barulho, as pessoas cansam enquanto coço, as pessoas dormem enquanto como. Todas as constatações me chegam como uma pontada desferida sem dó:

- Esta cólica que não passa de tolice católica!

Rio de quem me olha com pena.

- Tem esparadrapo?

Retorço-me em convulsões. Alma. Práxis. Problema.

- Quer um poema?

Realizo o percurso. Absurdo. Olho pro reflexo e não me vejo. Subtraio-me. E minha agenda jaz cheia de coisas pra fazer, promessas pra cumprir, mundo todo pra mudar. Pra melhor.

- Sobe?

Amanhece o dia eu calço meus tênis depois de tirar o pijama e vestir roupa. Banheiro e vaso sanitário e descarga e pasta e escova. Depois termino tudo o que não convém escrever (café-da-manhã, cabelo, óculos etc.) e abro a porta. Qual chave cabe na porta? Qual porta é a desta chave que tenho? Elevador que sempre demora, alguém estúpido sempre segura o elevador, alguém que merece morrer. Subsolo e a moto me esperando, verde.

Aquela repetição. Irrita. Partida em ponto morto, pedal pra baixo é primeira, depois vai subindo e é segunda e é terceira e é quarta e é quinta e então constato que não tem sexta. Sinal fechado é vermelho. Radar controla a velocidade a 60 e nada mais, sorte que este não detecta moto.

Sinal aberto é verde, sinal fechado é contramão, luz de freio é pisca-pisca, guardinha é avesso, muros também subtraem, paredes não existem, parentes sim.

O ódio.

O catarro.

O ódio de novo.

Para os daltônicos, o sol também pode ser verde.

2.2.09

Para começar a semana

"Alguns livros são injustamente esquecidos; nenhum livro é injustamente lembrado."

Wystan Hugh Auden (1907-1973)

Um botão para Mariana meu amor botar no coração

Boa noite, um botão. Não aquele de se abotoar o paletó, tampouco o outro de se jogar futebol no tampo da mesa. Boa noite, um botão; uma rosa, então.

Mas se acaso fosse de se abotoar, que semelhança haveria? Ora, a vontade, até que se case, de entrar logo numa casa e, abotoando-se, quietinho ficar, unido pra sempre à roupa do pano outroladodelá. Como se os dois lados do paletó fossem casal. Como se os dois lados do paletó fossem se casar. Como se os dois lados do paletó fossem nós dois.

Mas, continuo ainda, se acaso fosse de se abotoar, que maior diferença haveria? Ora, a verdade incontestável que - e isso é inerente à personalidade funcional dos botões - uma hora ou outra o paletó será desabotoado, como um divórcio ou um parto mal resolvido. Vontade inversa à de nós dois, lados que somos par. Vontade inversa à de nós dois, lados que somos idem. Vontade inversa à de nós dois, lados que somos um.

Só que nada, ou tudo isso, importa. Agora é boa noite, um botão; uma rosa então. E depois o sorriso que vai brotar, sem ensaio, como se eu me abotoasse em seu rosto. E depois o beijo e o soluço e o sorriso e o beijo e o eu-te-amo e o pra-sempre e o só-você. Pronto: abotoou. E, mais uma vez, aboletamo-nos um no aconchego do outro, no carinho do quente-coração, quem teve sabe como é.

O botão, entretanto, não é só isso. É também um sintoma de que, assim, vermelho, é o amor que nos une. Um amor que sempre evolui, ainda que pareça estar no máximo. Um amor que insiste em tanger as cordas do infinito e, nessa brincadeira de empurra-empurra, acaba dia após dia aumentando as dimensões do infinito. É limiar o nosso amor como o botão que se abrirá.

Olhe para a forma do botão e perceba como ele é um coração ao contrário. Mas o tempo vai passar e amanhã ou depois essas pétalas murcharão e cairão e secarão; meu coração, não! Este é eterno presente a ser fiel escopo de sua gratidão. E escudeiro de seu senão.

O que mais? O botão também é único e, por ser único, justifica um ciúme danado. O ciúme, neste caso, não é pedaço de crime, nem castigo ou prisão; é só um zelo desmedido, um pedido de atenção. Entenda como carinho. Entenda como carência. Entenda como quiser que eu não sei não.

E, nas horas de mais precisão, o botão - e por que não? - reveste-se de perdão. Seus espinhos são como um casal de mãos que, grudadas, rogam uma nova chance para os planos que houve serão. O botão é certeza. O botão é a garantia.

O botão também é lembrança e pode e deve ficar gravado na mente e no coração. O botão é um retrato de criança dum rebento temporão. Brilha na solidão.

Mas não se esqueça, meu amor, que de tudo isso o botão nasceu para ser rosa, assim como minha prosa é pra virar verso, um terço acaba em missa, e esta vai até às oito. Depois? É algodão-doce e maçã-do-amor na praça porque hoje é domingo, pede cachimbo e boa-noite-um-botão.

Mas não se esqueça do meu amor.

1.2.09

PRIMEIRO DE FEVEREIRO

Onde é que não terá carnaval?

TRINTA E UM DE JANEIRO

A expectativa como o inverso não funciona.

TRINTA DE JANEIRO

Tudo o que quero é andar descalço e plantar uma árvore por dia, vivendo a tolerância absoluta de um mundo autoral e compartilhando a fé resoluta de que há espaço para a inteligência, a criatividade e o respeito.
Se é preciso reservar um espaço para o ódio, que ele se ocupe da competição desenfreada, da ganância, do dinheiro, do mercado, do consumismo. Principalmente do consumismo, esta besta inconsequente que destrói vidas alheias!

Domingo, foto

Neve, 2009
Clique de Regina Cazzamatta (1983- )

Obsolescência, obso-excelência, observação à ciência

No reino do beleléu eu era um garoto que sonhava com um Atari 2600, um computador de letrinhas verdes e com o dia em que os telefones não mais teriam fio. No reino do beleléu a velha tinha um arco bem mais bonito do que o arco-íris.

O tempo passou de repente. Na verdade, temos a impressão de que ele passa sempre e cada vez mais rápido. São os traumas da evolução tecnológica e suas máquinas que em três dias já estão obsoletas - a pós-modernidade só tem servido para descartabilizar o novo, envelhecer o que ainda não funciona bem, corromper nossos sonhos.

*****


- Logo o homem estará obsoleto! - comemora o cientista maluco, como se já não estivéssemos.

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- Logo o homem estará obsoleto! - comemora o cientista maluco, olhando para seu novo robô-invento. Como se não percebesse estar se suicidando.

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- Logo o homem estará obsoleto! - comemora o cientista maluco, brincando de brincar de Deus, em seu laboratório de bilhões de dólares financiado pela Nasa. Enquanto isso, crianças morrem de fome no Afeganistão, na China ou em qualquer lugar do Brasil.

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- Logo o homem estará obsoleto! - comemora o cientista maluco. E deitado ele sonha. E sonhando:

"Acordei porque estar na mídia é moda. Toc-toc-toc:

- Sai da frente porque já falei que não estou! Mas eu continuava insistindo, nsistindo, sistindo, istindo, stindo, tindo, indo, ndo, do, o. Chato.

Abordei porque estar na moda é mídia: Toca, eu não sei. Mulhervilhosa me perguntou. Disse, toca eu não sei, disse. Te amão.

- Você é meu parfeito para mim.

Eu sentei e chorei." Mas isso foi no reino do beleléu, quando sonhar era de verdade. Isso foi no reino do beleléu, quando o homem ainda existia. Isso foi no reino que já foi pro beleléu.