30.6.07

A dor da gente não sai no jornal

[à guisa de prolegômeno:
o texto a seguir foi escrito no finalzinho de 2002
e dedicado à Srta. Márcia Neme - aquela que tanto nos fez pensar]

A chuva que chovia torrencialmente eram as lágrimas dos anjos que choravam a morte de Deus. Sim, porque assim falou Zaratustra: Deus está morto. Mas eu não sei quem o matei.
Via a chuva chover encastelado em minha casa. Não trajava sóbrio luto, nem para espantar a iconoclastia ou afugentar as suspeitas que naturalmente me caíam. Sempre detestei a anacronia desses cerimoniais, ritos e/ou resquícios de costumes tribais.
Recostado à janela, acompanhava as lágrimas angelicais que escorriam pelo vidro. Minha respiração embaçava o vidro, tornando quase opaco o que queríamos transparente. Areia, vidro. Vidro, areia. Areia e o tempo que passou na janela e só Carolina não viu. Não sou apenas eu que amamos Carolina, porque Carolina é uma menina que contamina, nos ensina a amar. (Vale não esquecer que hoje em dia há uma carolina em cada esquina — as mais doces são vendidas na padaria, quitute charmoso).
Areia, vidro. Vidro, areia. Sangue escorrendo na praia, manchando o mar verde. Ver de novo o mar, manchado. Mar vermelho. Moisés atravessando o mar e uma multidão brotando ao seu lado, todos sem nome, gentes azuis, amarelas, verdes, e algumas também um pouco carolinas.
Fui tomar um banho, quente. Era a única maneira de contrabalançar a chuva que chorava lá fora. Um peso, duas medidas. Cátion e ânion: ionizado eu ficava mais desinfeliz como se a existência fosse suportável, ou a insustentável leveza do ser, de ser, assim, desvencilhável.
Na cabeça passavam emoções recortadas de um filme chamado vida. "Tutto buona gente", dizia minha vó, una bella vecchia, e sorria sua prótese dentária. Contudo, no dia da morte de Deus, me lembrava de outras pessoas:
— Um dia, minha Filha, a gente vai ser feliz!
— A gente não é, Mãe?
— Um pouco. Mas um dia a gente vai poder comer à vontade, de tudo, sem precisar de dinheiro. Já pensou, um supermercado todinho só pra gente? Nunca mais a gente vai passar fome, de tanta comida...
Pausa. A Filha parecia reflexiva diante do que ouvira. Alguns segundos depois, abriu uma interjeição pueril:
— Mãe, o que é comida?
Não obteve resposta. A Mãe, contrita, continuava cozinhando água suja com jornal, a sopa que lhes enriqueceria o organismo para suportarem mais um dia nesta lenta agonia que é viver.
Penteando os cabelos eu olhava-me ao espelho, achando-me ridículo. Eu, um ser humano. Dotado de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores. Como Carolina, Moisés e a Mãe e a Filha que comem jornal. Como os jornalistas e os jornaleiros.
No espelho pude ver um cartaz amarelo dentro do meu cérebro, com a inscrição, em letras garrafais: JORNAL É QUE NEM SALSICHA: QUANDO VOCÊ SABE COMO É FEITO VOCÊ PERDE A VONTADE DE COMER. Estava convicto de que as pessoas não deveriam comer jornais.
Todos os dias são produzidos mais de dois milhões e meio de exemplares de jornal, no Brasil, somadas as tiragens de todos eles. Mais de mil toneladas de papel para saciar a fome de notícia, praia e sangue de todos nós, humanos dotados de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores.
Os jornais são feitos por jornalistas e vendidos por jornaleiros. Jornalistas e jornaleiros comem com o dinheiro que ganham através dos jornais.
Os jornais são lidos por mim, Carolina e Moisés. Gostamos de lê-los tomando café da manhã e comendo pão com margarina vegetal hidrogenada, a fim de começarmos o dia com a falsa sensação de sermos cidadãos bem informados a respeito da cotação do dólar rumo ao penta, da bolsa que caiu e era vidro e se quebrou, do presidente dos USA que quer bombardear o mundo inteiro para assim, exterminando os famintos, resolver o problema da fome.
Os jornais não são lidos por Mãe e Filha, óbvio, que são analfabetas. Elas ficam torcendo para que chegue logo o dia de amanhã, as notícias fiquem velhas, e o calhamaço de papel seja jogado no lixo, onde elas vão buscar seu pão-nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje. Na sopa de jornal com água suja, qualquer página serve, embora a Filha prefira os desenhos coloridos do Estadinho e a Mãe goste mesmo é das fotos dos artistas de cinema do Caderno2 ou da Ilustrada. O estômago não tem olhos e, portanto, não faz questão de digerir a coluna do Jabor ou do Simão e nem mesmo é capaz de discernir as diferenças entre a fotografia do Serra, imberbe, e do Lula, hirsuto. O estômago, aliás, também não tem cérebro.
Todos os dias são assassinadas milhares de árvores para a extração da celulose para a fabricação do papel para a impressão do jornal para saciar a fome de notícia minha, da Carolina e do Moisés e a fome-fome de Mãe e Filha. Todos os envolvidos no processo somos seres humanos, dotados de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores. Com o assassinato das árvores estamos contribuindo para o nosso próprio suicídio, lento e gradual.
Enquanto concatenava tão complexo raciocínio, refletindo enquanto minha imagem se refletia ao espelho, fiquei orgulhoso por ser tão brilhante na capacidade de encadear idéias lógicas. Em êxtase, conclui a importância de ser dotado de massa encefálica altamente desenvolvida e dedos polegares opositores.
A chuva parou de chover.
Pensando bem, matar Deus nem é tão grave assim.

26.6.07

Esta noite nem quero dormir

Alheio aos talvezes, estou mais para não sei. Não sei se a vida tem pressa ou corre devagar. Não sei quantos anos tenho. Não sei qual é meu caminho. Não sei os senões nem das vontades. Não sei de nada.

E, parafraseando aquele filósofo lá, tudo o que não sei é que, não sabendo, sei tudo o que não sei.

25.6.07

cada encontro no metrônibus é uma dúvida
um convite à vida
em dívida
um trambique
uma muleta ávida
para se aposentar

em suas dobras sempre sobra um pouco de tédio
um tanto de expectativa
um gole de poema
uma marca
e uma talvez saudade de reencontro

no metrônibus todo dia todo esbarrão
tem aspas
tem asas
mas as pessoas ainda não aprendemos a voar.

23.6.07

Convite pra vida

Vem ser vento
Que o vento sopra
Só pra vencer

18.6.07

Psiu de vaneios vários

Há braços, pernas, corpos todos a se perderem no encontro. Há calma, brilho nos olhares, literatura flamejante, um quê surpreendente. Há vidas, nos poros, nos poemas, nas idéias, na noite iminente.

Um gole de vinho? Um sorriso prometido? Os vieses muitas vezes desavisam, desviam, comprometem.

Regras preestabelecidas: * Letras não têm pé, posto cabeças. * Almas são corpos que se entregam. * Todo agrado contém um segredo. E vice-versa. * Fluir, fluir, fluir.

17.6.07

Sem gilete

Calcanhares, zumbidos,
umbigos,
amo
amão
amaço

amassos em redor.

calor
tosse
e dor
de ca
beça

Zumbidos, sorvetes, vazios vazios vazios.

15.6.07

LoriLori (À Primeira Vez)

aprimeiravez
primeiraveza
rimeiravezap
imeiravezapr
meiravezapri
eiravezaprim
iravezaprime
ravezaprimei
avezaprimeir
vezaprimeira
ezaprimeirav
zaprimeirave
àprimeiravez

13.6.07

Pequenas idéias sintomáticas de Olido Corc guardadas em um cubo de gelo alaranjado

Olido Corc tinha trinta e um anos mas estava morto desde os dezessete. Caminhava atrás das pessoas, especialmente dos japonesinhos. Perdão, chinesinhos. Comia criancinhas chinesas porque preferia sentir em seu estômago o atrito dos olhos puxados abrindo e fechando pela última vez. Depois era só digerir para. Mas por que não podiam ser japonesinhos? Coreanos? Olido Corc era estranho, muito estranho.

Defenestrava desejos puramente instintivos. Não transava, não bebia água e nem lia. Caía de sono, mas se negava a dormir.

Se houvesse mais texto, escreveria aqui e preencheria páginas e páginas com a vida de Olido Corc. Mas como não, resta o desfecho: Olido Corc ficava guardado dentro do aquário. Ou em uma fôrma de gelo. Morto havia catorze anos, claro.

7.6.07

Breve

Primeira tentativa.
Dos sapatos brotaram as terras, das terras as sementes, das sementes a primavera, da primavera a vida, da vida, a morte. Os sapatos racharam-se sob o sol; as terras, as terras, as terras enterraram-se ensimesmadas.
Saí correndo antes que jogassem as sementes em minha cabeça. Tenho pavor de imaginar uma árvore gigantesca nascendo de mim, sugando meu sangue e condenando-me a ser raiz, para sempre. Ou ter minha pele cheia de hematomas-flores fúcsias. Ou ser jantado por pragas da lavoura ocidental. Ou ao invés de vacina receber altas doses de pesticidas. Ou viver em estado vegetativo – o que é pior hipótese.
Dos sapatos, bati as terras antes de entrar, de supetão:
- Ô de casa!
O silêncio, como convite a não entrar. O sábado, em si, sorridente. O sábado sozinho. Eu, solitário. Desassossego porque se eu entrasse depois viria o domingo e a segunda com todas as feiras dos dias úteis – eu, inútil. Pálido, entre a escolha. O cérebro é um algoritmo nervoso entre as orelhas.

Segunda tentativa.
Terras não brotam do sapato, terras não brotam. Delas é que são brotadas as sementes, plantadas ou que se plantam sós. Delas é que sai a primavera com a vida e nelas é que se morre a morte, até ser enterrada. Os sapatos é que se decompõem sob as terras.
Não viria, não viveria vegetativo. Antes arrancaria com os dentes vermelhos todos os hematomas de flores fúcsia que surgissem em meu escopo. Disse em meu corpo. Não posso ser raiz, desses que deixam a árvore nascer, crescer e se reproduzir em seu entorno. Não viveria vegetativo. As pragas aos pesticidas. Antes. Morte às hipóteses, basta de hipocondríacos.
Para entrar sem bater, sem limpar os pés, sem tapete, sem olá. Rápido, solerte. Um abismo entre a porta e o travesseiro, entre os pés e o lustre, entre o entra e o entre.

Terceira tentativa.
Costumo comer terras quando estou contente deveras. Elas têm um aspecto saudável de cor escura e mancham os dentes com a tintura que soltam. Terras são boas, férteis, em se plantando tudo dão. Sementes, elas acreditam somente. E daí germinam as plantas e sobre as plantas nascem os bichos que trepam e sobre eles eu não sei muito não. Os sapatos não aparecem do nada sobre as terras; são fabricados por mãos humanas ou mãos máquinas de metal. Os sapatos desaparecem no nada sob as terras, e ninguém se preocupa com isso, meu deus.
Se houvesse nascido vegetal, cana, digamos. Seria amputado de meu pé e morreria. Seria consumido por um carro? Servido a um bêbado? Adoçaria uma xícara de café? Estragaria todos os dentes e mataria teus filhos de cirrose. Todos os três.
Porque a morte não perdoa nem os vegetais. Ela leva para as terras todas as almas, assim de supetão, sem bater à porta, sem bater os pés no tapete. É entra, entre, e sai. Saí.