26.5.06

Sortimento

Um amor que se preza, a surpresa burila:
Na lida há tempo pra cerzir amanheceres
E na alcova cego sossego em suaves prazeres.
Hoje não sei se tem lua
- a cidade apagou -
Não entendo de ventos
- a rosa já era -
Nem mais quero chorar
- meu relógio murchou!

Ao atravessar a rua quero encontrar o pensamento
antigo
- e nem por isso esquecido ou avesso -
guardado bem dobradinho
com três tantos de carinho
no canto do teu bolso esquerdo
- talvez protegido sob um guarda-chuva.
É nele que se apóia a crença
- nem mambembe, nem mambira -
naquele quê de eterno
quasenada, diz tudo:
- Eu te amo!

22.5.06

Solilóquio

Atadas as mãos, era ateu por convicção porque, à toa, se atou ao credo de crer na não-existência de Deus. Verbudivino qual-o-quê, vou costurar meu salário baixo atrás da escada! Não quero mais vender o almoço para comprar duas entradas de cinema.

Mas não é só o que irrita. Irrita também o suposto esmero em se vestir e a falsidade que nos exigem: barbear-se todas as manhãs, não arrotar em público, jamais vomitar na cara do entrevistado... À meia-noite, todos os jornalistas são castos e castigados.

18.5.06

Soldo

Estranho silêncio me percorre
Enquanto tento respirar-te

Onde? Por quem?

Debaixo da cama, em coma,
o cio repousa atado ao solo.

14.5.06

Solidão

o alvoroço
que me consome
a alma

não é um espasmo
nem um soluço

a falta
de um lenço para assoar
um rosto para olhar:
- estou com sono!

faz frio no cobertor esta noite.

12.5.06

Separação

Confirmar se o mar era mesmo aquela distância enorme cansava meus ensimesmados olhos de exatidão e cemitério. Parado na praia, feria-me com o soslaio de pensamentos: sonhar com Deus, correr na chuva, casar, comer uma torta de limão, me perder nas rimas de um poema velho assinado por Leminski. Ler mais.

Gosto. Mas tem sempre uns instantes de dor e sobra. Sombras para me esconder são poucas. Procurei por você todas as noites esta semana, na segunda esmagada num pesadelo, na terça borboleta azul, na quarta um punhal no peito, na quinta solidão. Hoje não sei como vai ser.

- Vamos pegar um cinema?

- Ah... Tá frio, melhor sorrir em casa.

Entre nós dois foi se firmando um continente. Depois, as lágrimas, um oceano. Atlântico. Eu África, você América. Pacífico. Eu uma ilhota a ver navios.

9.5.06

Von Rich

Por que isso na cabeça?

Era ela quem lhe fazia todos os regalos, desde alimentar no peito até aquela ula-ula de viagem louca pra Somália - ao preço de estelionatários sei lá quantos mil ou milhões de xelins. Era ela quem costurava a meia furada, era ela quem contava histórias pra menina dormir, era ela quem esperava acordada em noites de lua repleta quando lobisomem é colega da faculdade que só quer papar.

Aline, ali, ensimesmada. Olhava e não enxergava mãe. Entendia o mundo como, adolescente, tudo diferente. Mãe igual à oligarquia de seres adultos chatos cheios de regras, regalias, impostos e álibis. Nunca do bem.

Um dia cismou que queria ganhar um escorregador. Dia seguinte, lá estava, novinho em folha e caule, plantado no jardim de seu quarto cor-de-rosa. Depois vieram barbie, kit de vamos-brincar-de-cozinha, modess, coleção de camisinhas, muita muita muita roupa de grife, sempre um namoradinho novo ou importado, grana pra balada, carro novo carro novo carro novo pra rodar por aí. E uma bolsa obtusa. E sessões semanais em salão de beleza, terapia, acupuntura, massagem, escambau.

Mauro, um dos namorados. O mais inteligente de todos, corajoso e entendido de drogas psicodélicas. Alucinados, viam juntos: sete anõezinhos, gnomos cor-de-abóbora, estátuas reluzentes da liberdade que nada, cds dos beatles lucy-in-the-skies, putas suecas vestidas como marcianas, sinônimos de zumbidos, alcachofras fosforescentes, ets de todos os tamanhos, muitos anéis para pouco saturno. Endoidecidos, viajavam juntos, não só Somália: Islândia, Malásia, Tailândia, Holanda, Suazilândia, Mongólia, Groenlândia, Flórida, Alabama, Florianópolis, São Paulo, Holambra, Águas de Lindóia e até América Latina.

Mãe não se reconhecia mais no espelho, em sete pedaços e nenhum caroço. Trêmula como se fosse maldição ou um estranho sentimento premonitório. Mãe e o terço na mão, o diabo na cabeça, a foice cutucando as costas.

No quarto ao lado toneladas de ervas daninhas. Travesseiro. Cheiro. O plano esboçado no papel de pão: mapa, lapiseira, borracha, setinhas indicativas de eu-vou-aqui-você-por-ali-vai-pra-lá. Todos os dias, mentalizando. Depois fumando o mapa, cavando a veia com a lapiseira. Cansando, transando, dormindo.

Era noite de 31 de outubro. Mauro entrou na casa armado com um estilingue e pedrinhas pontiagudas envenenadas. Mãe e pai na cama, dormindo pela décima sétima vez. Sangue na cabeça dos dois. Dor. Sangue. Aline sorriu.

E é por isso, minha filha, por causa dessa história que aconteceu há tanto tempo, que hoje sua mãe e eu dormimos de capacete.