29.10.06

Fome de notícias

Famigeradas sopas de jornal continuavam sendo a base alimentar daquela família. Com uma importante diferença: o menino mais novo, sete anos, não sabia ler as manchetes que comia todos os dias.

- Cê precisa matriculá o Jeremia na iscola, cumádi... – dizia Filomena, a vizinha astuta.

- Deixa disso, cumádi. Perdê tempo pra quê? Qui im casa ele mi ajuda e dispois inda tem tempo pra ganhar uns troco como engraxate...

Todos os meses, Maria das Dores recebe a importância de 50 reais, a título de ajuda, do Governo Federal. O dinheiro, mero paliativo que não combate a pobreza estruturalmente, vem fácil, sem exigir nenhuma contrapartida – Jeremias continua analfabeto. A não ser, é claro, o voto, garantido. Maria das Dores já sabe quais botõezinhos apertar na urna eletrônica, muito bem, clap clap clap.

Nos últimos quatro anos muitos assuntos foram engolidos por Maria das Dores, Jeremias e seus outros oito filhos. Alguns, ela até chegou a bater o olho e tentou compreender as letrinhas. Outros, nem percebeu. Jeremias não entendeu nenhum deles. No dia em que almoçou uma página com a foto do Delúbio Soares, tinha ouvido umas coisas estranhas no rádio e perguntou:

- Manhê! Que qui é mensalão?

- Num sei, fio, num sei. Mais si é grande deve di sê coisa boa... Credite: vai miorá a vida da gente...

Achava engraçado quando no prato estava a careca reluzente do Marcos Valério e a sopa de jornal virava sopa de letrinhas com José Adalberto Vieira da Silva, aquele dos dólares na cueca. Devorava apetitosamente Palocci, Gedimar, Zé Dirceu e tantos outros homens, digo, nomes. Nomes feios, avessos.

Um dia, Jeremias ouviu discurso de político quando engraxava sapatos de algum bacana.

- Manhê! Que qui é honestidade?

- Ih, fio, num sei. Di onde cê tirô isso? Acho que num ixiste...

- I ética?

- Ai, essi minino, viu!? Ingora deu pra ficá doidinho, só inventano palavra...

E voltou para sua panelinha velha no barraco, a cozinhar o jornal de ontem com a foto de um presidente sorridente, gordo e barbudo, apedeuta a debochar da ignorância que o elegeu.

Ah, se a memória não fosse tão curta e a informação tão mal-distribuída, Maria das Dores entenderia que Fome Zero mesmo só nas comilanças da Granja do Torto, cujo churrasqueiro... Bem, ela não sabe de nada – e, nisso, se assemelha ao presidente. Agora tem que acabar logo seu almoço de jornal para, em seguida, correr para a escola onde seu filho jamais estudará. Sabe de cor quais numerozinhos apertar para que uma foto parecida com a de seu almoço apareça na tela. Aí é o verde. E mais quatro anos de paliativos para palitar os parcos dentes que lhe restam inteiros na boca.

24.10.06

Para ver o mar
o melhor lugar
é dentro.

Para ver a terra
quem mais carrega
o vento.

Para ver o dia
qualquer melodia
invento.

Para ver a noite
assim de açoite
um tempo.

Para ver você
entender você
só eu mesmo.

20.10.06

Carnificina

Os mortos, com hora marcada,
Não sabem de nada.
Agora dormem, amanhã trabalham.
Banham-se, fazem a barba.
Tornam a dormir a última noite.

Não sabem de nada.
Nem imaginam que serão notícia.

16.10.06

Quadrinha

Que tudo que ainda me reste seja o teu sorriso
Na réstia estranha das lembranças luciluzidas
Que nada do que te sobre seja do meu vazio
Imenso na sacada onde mora o horizonte fundo

6.10.06

Puto

Sou um poeta morto
de cujo corpo, puto,
ressôo em coro cócegas
sem as quais o tudo
caminharia, ó ninharia
às cegas - e riria.

E a cada mínimo
minuto
que passa
digo adeus ao relógio
às horas, à lógica
e aos lábios que amei

Porque, poeta morto,
não sou mais refém do tempo
nem do corpo
nem escasso:
faço das pontes sobre o nada
o algoritmo destes versos
e, puto,
aprisiono cada minuto
em um ramalhete de nulo
tributo
sobre meu túmulo.

2.10.06

Caixa de entulhos

tudo o que a vida me acumulou
tratei de descartar:
trabalhos, amores, livros...

na ponta dos dedos
sobrou só o céu da boca
e um naco de língua

agora sou uma nesga de nada
nadando no vazio
do silêncio.