Hermenegildo era um protótipo de homem. Não bastasse seu nome no RG, não bastasse seu crachá dependurado o dia todo no lado esquerdo do peito, não bastasse o não bastasse sempre pulando irreversível em sua mente.
- Vai tomar no c...!
- Pô, Menê, pega leve...
Trabalhava como encaixotador, no final da linha de produção da indústria X, na rua Y, do bairro Z, da cidade Alfa. À noite, em sua casa, encontrava Mulher.
23 anos, morena, lábios carnudos, corpo esbelto. Hermenegildo nunca entendeu como conseguira aquele filé. E todo dia agradecia a Deus, Buda, Padinho Ciço, Jeová, Amon-Rá, Galinha Preta, Saci Pererê e tudo o mais que lhe vinha à cabeça. Até ao Lula, como se Mulher lhe tivesse sido garantida por Medida Provisória.
Encaixotador era profissão ingrata. Ficava trabalhando e remoendo o som encaixotador. Tentava encaixar um substantivo pervertido. Pra sobrar esperança. Pra produzir gozo. Pra antecipar Mulher - esperando-o, sorrindo, na casinha simples de número 123, da rua A, no bairro B, subúrbio escuro e úmido da mesma cidade Alfa.
Se era calor, Mulher o esperava nua. Hermenegildo sempre se perguntou se ela ficava assim pela casa o dia todo, mas nunca teve coragem de confirmar com Mulher. Tinha ciúmes das janelas. Tinha orgulho de Mulher ser sua. Do muro, em cima.
Se era frio, Mulher o esperava com um café quente, pão, manteiga. E, enquanto conversavam, preparava sopa ou purê. De acordo com o humor.
Na indústria X, encaixotador:
- M... de caixa que não se encaixa.
- Calma, Menê, calma...
- P.. que o p..., c...!
Enquanto isso, Mulher ficava ansiosa por um enredo que não vinha. Suas vidas eram a mesmice, condenados. Casara-se com Hermenegildo para pagar promessa. Penitência. Tinha de ser com o primeiro que dobrasse a esquina da rua Y, no bairro Z, da cidade Alfa. Tinha de ser um ritual: achamento, olhar, bilhete jogado no bolso esquerdo, encontro à meia-noite depois de uma semana, exata. Depois, entrega, volúpia, selvageria gostosa. Às seis da manhã, um convite: casamento. Com a condição de que uma negativa custaria ao felizardo a própria vida.
Ela, 23 anos. Ele, 28. Aprenderam a se gostar, amar até.
Hermenegildo procurava não parar pra pensar em sua sorte grande. Seus nervos, em nó, provocavam uma arritmia cardíaca quando se dava a filosofias baratas. Preferia compensar com retidão o desmesurado de sua relação: não se dava a excessos, recusava esticadinhas com os amigos, sequer olhava para o traseiro rechonchudo da copeira da indústria X, era todo-carinhos com Mulher, fazia juras de amor todos os dias.
Mulher era a loucura. Sem reticências.
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