11.3.08

O EVANGELHO SEGUNDO OS RATOS (e a saga de universitários indefesos)

*escrito em meados de 2002.
No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava vazia, sem queijos e guloseimas; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as poças d’água das goteiras.

No catecismo dos ratos, a lição tinha um caráter de religião e de história. Porque ao mesmo tempo em que eles oravam ao Deus onipotente, onipresente, onisciente, onírico, onimaginável e onimal, podiam conhecer como o mundo fora criado antes de existirem os mamíferos roedores. Um tempo pré-Ratão e pré-Rateva, juntos no Éden, comendo maçãs e sendo tentados porque toda nudez será castigada.

No princípio era o vestibular. E o vestibular se fez vaga e habitaram entre nós.

Quando, depois de anos de penumbra total e fome, a casa foi aberta, a comemoração reinou no reino dos ratos. Os ratos poderiam voltar a roer a roupa dos reis de Roma. Enfim, moradores humanos! É o fim do jejum e da penitência.

Deus disse: “Fiat lux”. E o funcionário da CPFL veio e nos propiciou desfrutarmos da invenção de Edison. E Deus viu que a luz era boa, ainda que sujeita a apagões. E separou a luz das trevas, onde mora o ministro Pedro Parente. À luz, Deus chamou “dia” e às trevas chamou “retenção de despesas”.

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1.
Móveis arrastados. Muito barulho. Limpeza.
Ratos apavorados convocam reunião extraordinária:
- Prezados colegas, a situação é calamitosa. É evidente que nos será de bom grado a instalação desses humanos na casa, uma vez que teremos abundante comida a fim de saciarmos nossa fome. No entanto, com toda essa arrumação e limpeza, muitos de nós estão sendo exterminados! – alarmou o prefeito Sr. Ratan Chis.
- Diz a Bíblia que ainda não é chegada a hora do Apocalipse, meus irmãos. Mas são os sinais do fim dos tempos. Vigiai e orai, porque vós não sabeis a hora. Purificai vossos corpos e vossas almas... – o religioso advertiu.

2.
Calor de Bauru, a limpeza virou uma farra com muita água no chão e cerveja nas mãos. Os jovens comemoravam, afinal haviam conseguido passar pelo funil do vestibular e estavam ali, prontos para a vida nova.
- Viva a República Caleidoscópica, onde a realidade é uma alucinação! – gritava Carlão enquanto descarregava uns móveis velhos que a turma comprara num feirão a preços módicos.
Soninha limpava o canto da sala e foi a primeira a notar que já havia moradores na casa. Um ratinho foi tentar participar da festa e derrubou uma lata de cerveja...

3.
- As famigeradas ratoeiras já não nos metem mais medo. Só humanos ridículos pensam que uma armadilha tosca dessas pode nos capturar. Anos e anos de seleção natural nos garantiram a habilidade de não cair na arapuca. – comentou um jovem rato, presunçoso.
- Mas existem os tóxicos. São terríveis! – lamentou uma velhinha, com terço na mão.
- Pô tia, nem tanto. Se não formos a fundo, não tem grilo. É só doideira, curtição... O perigo é a overdose, mas tem risco não! A viagem vale a pena, faz a cabeça... – resmungou, chapadão, um rato-gonzo.

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Bauru (ou BigMac), 17 de abril de 2002.

Mãe:
Sei que é muito demodê eu ter que escrever cartinhas para você. Mas já viu, né!? Depois que cortaram o nosso telefone mesmo a gente implorando pro moço pelamordedeus... E-mail? Difícil com aqueles computadores jurássicos que reinam obsoletos no nosso câmpus. O jeito foi apelar, “carta social”, um centavinho.
Estamos morando em mais gente aqui. Sim, além do Carlão, da Soninha, do Teco e de mim, temos a companhia de adoráveis mamíferos roedores. Até levei alguns para o laboratório de biologia, mas não adianta: eles se reproduzem rápido demais e não há como manter a homeostase desse sistema. Daqui a pouco, vão dominar a República Caleidoscópica.
Já tentamos de tudo: vassourada, ratoeiras, veneno... Semana passada decidimos não ter mais comida em casa, para ver se a fome os faria procurar outra praia. Sem chance. Parece que eles já viviam aqui antes da gente e se consideram os donos da casa.
No mais, tudo bem. Estudando um pouco, curtindo muito a facul. Pode deixar, estou me cuidando. Não se preocupe com as festas, elas não vão não acabar com a gente.
Um beijo para o pai e outro para você.

Carol.

Ps.: Penso seriamente em arranjar um gato – a Soninha está com um que faz Educação Física...

[Tãtã-tãtãtã-tã-tã-tã... Chamada a cobrar: após o sinal diga seu nome e a cidade de onde está falando]
- Mãe? Aqui é o Teco. Isso. Também, mãe, também estou com saudades. Tá, tá tudo bem. É tô estudando um pouco, mas estou gostando sim. Tô comendo direito sim. Vô só no Dia das Mães. Não mãe, pode deixar que eu tô me cuidando. Tô maneirando nas bebidas, não se preocupe. Namorada? Não, pelo menos oficialmente, afinal tenho que curtir as festas né, mãe?! Pode deixar que eu me cuido. Sabe o que é? A casa está infestada de ratos... É. Alguma idéia do que fazer? Não, mãe, não precisa vir aqui não. Não ia adiantar nada. O quê? Já tentamos ratoeira, veneno, tudo. Até vassourada. A Carol andou até levando uns para o laboratório de biologia pra ver se diminuía um pouco. Eles já moravam aqui antes, se acham os donos da casa. Imagine, nossa querida República Caleidoscópica, ocupada por mamíferos roedores medíocres! Tá, vou tentar, então. Vamos ver. Tá. Manda um abraço pro pai. Valeu, mãe, um beijo.

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$$$ A SUA CHANCE DE GANHAR DINHEIRO $$$
A República Caleidoscópica está promovendo uma sensacional gincana. Durante todo o sábado, aquele que conseguir caçar mais ratos ganhará um prêmio de 100 reais em passes de ônibus e vales-marmita.
Informações: 5553 0939, com Carlão.

“Tudo bem, a idéia não foi tão genial assim. A gincana teve só dois inscritos, aliás dois colegas de sala que ficaram compadecidos com a causa nobre. Parece que ninguém estava afim de exterminar os ratos da Caleidoscópica. Melhor seria fazermos uma festa. Viria mais gente, rolaria umas transas e uma farra merecida. Na verdade estamos precisando relaxar, os ratos nem são tão maus assim, dá pra conviver com eles.”

Enquanto isso...
- Não é possível. Não agüento mais esses humanos. Eu disse que era bem melhor morar numa casa de família, mas tinham que alugar essa casa para um bando de estudantes? Tinham? Eles não têm grana para comprar comidas mais sofisticadas e ainda ficam inventando armadilhas absurdas para tirar o nosso sossego... – dizia um ratão saboreando um resto de comida no chão da cozinha.
- Ora, ora... Não reclame. Aqui é bem melhor. Casa de família é tudo arrumadinho, não sobra essa comida no chão, nossa alimentação é muito mais difícil. Ouça a voz da experiência, meu caro, eu já morei em casa de família.

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- Dá-se o nome de rato, de modo geral, a todo mamífero roedor do grupo dos miomorfos e aos histricomorfos, da família dos equinídeos. Genericamente, pode-se dividir esse grupo de roedores em ratos-domésticos, da família dos murídeos, e ratos-silvestres, das famílias dos cricetídeos e equimimídeos. Os cricetídeos são ratos de pelagem macia e os equimimídeos possuem pelagem dura. Os verdadeiros caracteres de separação do grupo estão baseados na estrutura dos dentes e ossos cranianos.
- Ai meu Deus, por que fui prestar biologia? Por quê? – Soninha, desesperada em sua aula, depois de passar a noite sem dormir, tentando caçar os ratos da Caleidoscópica.
- Os ratos-domésticos são considerados no Brasil espécies invasoras. As espécies mais prejudiciais são a ratazana ou rato-de-esgoto e o rato negro. A ratazana é...

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Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Tem gente cantando, tem gente esperando a hora de chegar sexta-feira, de chegar feriado, de chegar férias, de chegar casa-comida-roupalavada-colinhodamamãe. Ausência de ratos. Mickey Mouse na TV, inofensivo. Sabe que agora eu vou torcer sempre para o Tom, não gosto mais do Jerry, não gosto mais do Jerry, não gosto mais do Jerry. Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Without mice.

“Esta noite tive um sonho. Um sonho pesado, pesadelo, medo. Eu, sozinha, nua na cama, calor. Um rato começou a passear pelo meu corpo, delicadamente, fazendo cócegas. E eu até gostava. Sabe, quando ele passeava pelo meu corpo, pelas áreas mais recônditas... Credo! Aquele ser repugnante, e eu até gostava. Ando mesmo precisando de um namorado. Arranjar um gato para matar os ratos!”

- Os ratos devoram tudo quanto é comestível, desde cereais e frutas até a carne em decomposição, chegando mesmo a se entredevorarem. O que os torna mais perigosos, contudo, é o fato de serem portadores de germes de graves enfermidades, tais como a peste bubônica, a triquinose e o tifo. A famosa peste negra da Europa, ocorrida em meados do século 17, e as epidemias de peste bubônica no começo do século 20, como vocês devem ter estudado em História, foram devidas a uma excessiva propagação de ratos.

“Lembro da história do professor Tomás, lenda ou verdade, que foi estudar o desequilíbrio ecológico de um povoado lá nos confins da Inglaterra. O nome dele, aliás, era Thomas. Tinha a ver com ratos, mas não me lembro bem. Ah! sim, ocorria que os ratos acabavam com as plantações de grãos daquela comunidade. Então os maridos tinham de ir embora pra cidade, atrás de emprego. As suas esposas, muito sozinhas, arranjavam gatos para lhes fazer companhia. Os gatos acabavam com os ratos e as plantações novamente tinham sucesso. Os maridos voltavam, as mulheres davam fim nos gatos. E assim, as gerações se alternavam...”
- Combatidos sem cessar, sobretudo em épocas de epidemias, os processos mais correntes para exterminá-los são as ratoeiras e os venenos. Apesar de tudo, os ratos têm seu aspecto útil: a variedade albina, principalmente, é muito utilizada em nossos laboratórios de biologia. São ainda utilizados em grande escala nas investigações de genética, e empregados nos laboratórios de psicologia experimental. O camundongo, embora muito...

Caleidoscópica. Lucy in the sky with diamonds. Agora sim, corpos se entrecruzando, fim de festa, o prazer reinando absoluto. Caleidoscópica. No instante mágico as cores se misturam, os gostos se misturam, as almas se misturam. Quem inventou o amor? Não sei, não quero saber e nem saber quem sabe, quero é vivê-lo plenamente. Energias se misturam. Imagine all the people sharing our republic, you may say I’m a dreamer but I’m not the only one. Caleidoscópica. De quem são os lábios que me beijam? De quem são os braços que me tocam? De quem são as pernas que são minhas? Caleidoscópica.
But the dream is over: tinha um rato no meio do caminho, um rato voyeur que, não se contentando em contemplar-nos, decidiu participar e foi... a tragédia... Tinha um rato no meio do caminho, no meio do caminho tinha um rato. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas... Na minha vida universitária. Na vida da República Caleidoscópica.

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Ok, nós perdemos. Ratos crescem, reproduzem-se, locupletam-se. Por isso alguns humanos são comparados a ratos, principalmente políticos. Por isso.
Vamos mudar de casa e deixar esta aos ratos. A República Caleidoscópica vai começar de novo.

Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim dos tempos, seja na graduação, seja na pós-graduação.

Um comentário:

Giovanna Longo disse...

baseado em história real?