17.12.07

cronos

A arte existe para que a verdade não se repita.
Meu pai tentou explicar tudo isso. Primeiro o lance do revólver verde depois o que acontece quando enferruja e dispara matando neguinho pobre e vagabundo.
Não adianta. Eu falei que pouco adiantava esse barato de explicações e tal. Eu sei que primeiro morri para, depois de todos os ritos culturais vigentes em nossa sociedade serem providenciados, brotar na ponta esquerda de um bambu, ainda que isso seja difícil de explicar e mais difícil ainda de se entender.
Quando brotei ainda nem era primavera e todos os ventos permaneciam guardados na caixa mágica dos brinquedos inacessíveis[1]. Nesse estágio eu já tinha todo o formato corporal que hoje ostento e a mesma cor-de-abóbora com a qual todos os nove elementos de minha rara espécie somos conhecidos, menos, é claro, a capacidade de morar em obras literárias, carcomidas ou não, e de manter relações sexuais com quaisquer seres e/ou objetos, em grupo ou isoladamente – tais aptidões só vêm a posteriori, depois da puberdade, lá por volta dos 112, 196 anos, mais ou menos.
Para celebrar a Páscoa, todo gnomo cor-de-abóbora tem que completar 82 anos e 23 meses e 12 dias e então tomar um banho de ervas azuis. Raríssimas ervas. Ficamos assim da cor-de-burro-quando-foge por 36 horas para depois quebrarmos o casulo imperscrutável que se nos revela borboletas amarelas. Toda essa miscelânea colorida nada tem a ver com a bandeira do movimento gay, pois os gnomos não nos importamos com nenhum tipo de movimento – nem os da física, nem os do andar mesmo – porque nos cremos como próprios movimentos em nossos momentos. Mas como eu ia dizendo, toda essa salada multicolorida não é coisa estanque: representa a concretização de um rito de passagem, relembrando o passado, os antepassados, a história, a gênese de nossa extirpe. E a consolidação do lema impronunciável seguido religiosamente por todos nós remonta a essa tradição.
Ao completar 347 anos, fumei um cachimbo retrógrado com o único objetivo de me fazer de novo com 107, mais ou menos. Pra ser exato, 107,281333333..., que é um número tão cheio de numerais após a vírgula que parece muito, via rima plástica, com o número  (lê-se pi). Mas é só uma dízima periódica mesmo.
Estudei grego pra entender aqueles professores da faculdade. A propósito, pois sim, fiz faculdade como todo ser mediano sonha, só pra poder honrar pai e mãe e possuir um diploma de bacharel na parede do escritório, ou do banheiro, sei lá. O meu diploma eu preferi fumar na festa de formatura, aproveitando que me foi entregue enrolado em formato cilíndrico. Solicitei a segunda via, através de todos os trâmites burocráticos – claro que até agora não me chegou.
Na verdade são duas as coisas fundamentais que, percebi, todo estudante universitário aprende neste mundo dos gnomos cor-de-abóbora:
1) Fumar verduras. Com a exceção dos que já fumavam alfaces e repolhos antes – estes apenas aprimoram a prática, aplicando as técnicas existentes com maior desenvoltura ou mesmo desenvolvendo novos modelos que incluem rabanetes, cenouras e picles. Alguns chegam a publicar imensas teses, verdadeiros calhamaços impressos em papel fumável, explicando as origens e o significado místico-religioso da fumaça verde. Outros acabam produzindo materiais de auto-ajuda no estilo “como sorver um bom beque – baseado em fatos reais”, “seja um feliz herbívoro”, “erva não-mate”, etc. – esses são os que ganham mais dinheiro. Uma minoria restante se dedica ao tráfico mesmo, afinal alguém tem que fazer o trabalho sujo que dá sustentação ao esquema. Não existem outras categorias porque não existem outros gnomos (somos apenas em nove), mas nada impede que as novas gerações criem novos segmentos para um mercado tão ascendente quanto esse. Alguns pensadores contemporâneos chegam inclusive a antever uma tendência de fusão com a informática, possibilitando assim o nascimento de profissões ligadas ao universo cibermacônico, diferindo, evidentemente, dos já existentes ramos cibermaçônico e cibermanicômico. Não, também não tem nada a ver com cibercômico. Visionários acreditam em hortas.
2) A pirateação de livros. Quando chegamos à faculdade já éramos sábios conhecedores das técnicas de pirateação de CDs e outros materiais altamente perecíveis e facilmente renováveis da nossa Indústria Cultural. Alguns, inclusive, tinham em suas garagens verdadeiras “casas do chinês”, onde nada se perde, nada se cria, tudo se copia.
No entanto, o que ninguém nunca tinha parado pra pensar era como é tremendamente fácil a cópia inescrupulosa e constante e irrefreável dos livros produzidos pela carente e pobre intelectualidade do país. A difusão do xerox é prática acadêmica inclusive incentivada pelos professores, solução paliativa ou definitiva à escassez dos títulos existentes na biblioteca e ao alto preço dos livros novos nas livrarias burguesas, inacessíveis aos universitários que sequer tomam banho cotidianamente.
Enfim, a fabulosa idéia de xerocar livros é prática que acaba se tornando mania. Ao final da graduação, o jovem gnomo pode gabar-se por possuir – símbolo de sua invejável sapiência e sólida erudição – um farto acervo com 327 pastas plásticas recheadas de papel fotocopiado. São toneladas de conhecimento impresso ilicitamente, sem direitos autorais, em algo equivalente a uma floresta inteira. De Marx a Lyotard. De Rousseau a Deleuze. De Peirce a Milton Santos.
Mas foi só depois que, formado e desempregado (a faculdade é o caminho mais fácil, curto e garantido para o desemprego!), me tornei um adulto. Conheci toda a sabedoria, mas isto é pano pra outra manga.
[1] Sim, esta história não tem nem nunca terá público ledor, credor, leitor ou crente.

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