18.4.08

Comida fria, corações frios, corpos frios...

[ solidariedade não tem nada a ver com só lidar com a idade, mas pode muito bem ser uma sólida idade em que todos os homens tenham a cabeça no coração e possam olhar para os miseráveis com mais que dó, com vontade mesmo de ajudar aquelas gentes ]

Um cachorro de rua não é um cachorro apenas. Carrega sarnas em seu corpo e parece nem ligar. Quase passa fome, mas come o que encontra sem se preocupar se amanhã terá algo novo. Não tem dono e por isso olha com ar superior os cãezinhos das madames... Eles são livres, e é tão bonito saber que eles dormem ao relento, podendo ser assassinados e virar até cachorro-quente de algum mendigo...

As pessoas por vezes têm pena deles. Dizem que andam sempre raquíticos, corpos esqueléticos, sofridos, farejando lixo em busca de comida. Eu não.

Tenho pena sim das gentes que existem lá longe, na África, no Oriente, no Nordeste, nas favelas de São Paulo, na rua da frente de casa, ou em qualquer outro lugar... Gentes que se alimentam de nada, comem vento, vomitam saudade de pão, enchem o estômago do vazio existencial em que vivem. Tenho pena dessas gentes.

Aforismo sem juízo: Há no mundo pessoas que não têm fome porque nem sabem o que é comida.

Outro dia vi um retrato no jornal de uma negrinha do Zaire, nove anos, aparência de quatro, cinco no máximo, desnutrida, barriga d’água, olhos amarelos... Deus deve estar cego! Tão mirradinha, chorando de fome, e sua mãe preparando uma água suja fervida para tapear o organismo. Em São Paulo fazem sopa de papelão.

Aforismo sem juízo 2: Há no mundo depósitos onde apodrecem comida enquanto gentes apodrecem por falta de comida.

No alto do morro da favela, uma senhora querida por todos conduz a oração: “Pai Nosso que estás no céu, santificado seja o Vosso Nome, venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa Vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo o mal. Amém.” Ao fundo, um neném de poucos meses, sem nome ainda porque a mãe não tinha dinheiro para registrar o rebento, mandar batizar, fazer roupa para a pompa da cerimônia etc., urrava o maior dos chororôs e o mais sofrido de todos eles. Tinha fome.

Por que fome tão grande para criança tão pequena? Deus deve estar surdo! Ou dispensou o padeiro celestial encarregado do Pão Nosso de cada dia.

Aforismo sem juízo 3: Nem só de pão o Homem viverá, mas de toda palavra de Justiça (não esquecer também dos brioches, das bombas de chocolate, das carolinas, dos sonhos e de todos os quitutes de padaria apreciados pela burguesia).

Afeganistão. Em meio a tantas minas terrestres, resquícios mórbidos de guerras anteriores, meninos e meninas famintos brincam de pique-esconde, cabra-cega e amarelinha. Uma maneira que a as mães encontram para distrai-los a eles e aos seus estômagos da fome crônica: “Vão catar coquinhos, ver se estou lá na esquina, procurar agulhas no palheiro...”. E eles vão.

Então um alguém qualquer daquelas gentes novas de pouca idade solta um grito de dor. As pessoas correm para ver e contemplar mais uma vítima dos macabros artefatos bélicos. O menino perdeu a perna. Três dias depois, do alto de suas muletas, o garotinho pára de chorar e fala inocente para seu amiguinho: “Será que demora muito para brotar outra perna?”.

Aforismo sem juízo 4: E por falar em solidariedade, devia haver um racionamento de comida. Quem sabe as pessoas aprenderiam o significado da palavra (solidariedade, segundo Aurélio: ‘s. f. Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade’. Palavras bonitas para se pensar).

Pensava em todas essas coisas enquanto olhava para o prato de comida sobre a mesa. Parece que o apetite me fugiu de repente, contemplando a miséria do mundo. Meu Deus, meu Deus, onde estás? Por que te escondestes numa hora destas?

Não ouvi resposta. Deus deve estar mudo! E eu tentava agradecer aos Céus pelo meu sustento quando minha mãe:

- Acorda, menino! Coma logo que o almoço esfria!

Então percebi que eu tinha um prato de comida para esfriar, enquanto muitos estão morrendo, esfriando, pela falta de um prato de comida.

Um comentário:

Giovanna Longo disse...

a beleza de um texto bem escrito tira a tristeza de uma história triste.