13.1.08

chapeuzinho verde

Era uma vez, e só era porque nunca mais há de ser de novo, como aqueles sonhos bons que não voltam jamais, uma menininha muito bonitinha ainda adolescente mas muito linda. Ela tinha por volta de alguns poucos anos de vivência na primavera da vida e andava contente saltitante pelas estradas afora dos bosques mais inventados da literatura e sua vida se resumia nesse retrato como se as fadas existissem mesmo e os contos não passassem de histórias verídicas.
Era uma vez um belo dia, porque em todas as histórias da carochinha o dia tem que começar belo virar feio e por fim ter um desfecho belo que é para não assustar as criancinhas inocentes que vão ouvir as histórias da carochinha que foram criadas lá no tempo do arco da velha que ninguém se lembra mais. O nome da menininha muito bonitinha era Maria Lúcia mas todos a chamavam de Chapeuzinho Verde porque ela era palmeirense como seu falecido pai e adorava pensar que podia agradar ao defunto usando sempre a mesma vestimenta verde.
A mãe de Chapeuzinho Verde ficava sempre brava com ela por usar aquele chapeuzinho verde ridículo e dizia que qualquer dia uma vaca ainda iria confundir o gorro com capim e ela voltaria sem gorro para casa, quiçá mesmo sem cabeça se não tomasse cuidado. Na verdade a mãe de Chapeuzinho Verde só queria dissuadi-la da idéia de homenagear o falecido pai porque no fundo ela não acreditava que uma vaca inocente pudesse ter a perspicácia de atacar uma criancinha ainda adolescente mas muito linda. Na verdade a mãe de Chapeuzinho Verde não queria mesmo é se lembrar do defunto porque ela, ao contrário de todas as viúvas da literatura infantil, não era dessas viúvas resignadas que guardam luto para a vida inteira. Na verdade a mãe de Chapeuzinho Verde já tinha ardentes relacionamentos extraconjugais, primeiro com o leiteiro e outros eiros, depois com pessoas interessantes que ela conhecia pela Internet, tudo isso antes do falecido vir a falecer. Depois então ela descambou de vez e assumiu toda a sua veia adúltera incontrolável, agora que era viúva e via de regra não devia nada a ninguém. Por isso a mãe de Chapeuzinho Verde ficava sempre brava com ela por usar aquele chapeuzinho verde ridículo. A história da vaca era só pretexto bobo para enganar criancinha ainda adolescente mas muito linda.
A mãe de Chapeuzinho Verde mandou Chapeuzinho Verde ir visitar a vovó que morava numa cidade muito velha onde ainda não tinha Internet. Era para ela levar umas comidas novas e importadas para a vovó se deliciar porque a vovó adorava guloseimas, parecia criancinha ainda adolescente mas muito linda. A mãe de Chapeuzinho Verde na verdade inventou que a Chapeuzinho Verde precisava passar uns tempos com a vovó, que precisava levar comidas novas para vovó velha, que precisava ver vovó, fazer vovó sorrir, porque na verdade a mãe de Chapeuzinho Verde já estava enjoada um pouco da filha e só queria distância da filha mesmo que a filha fosse uma menininha ainda adolescente mas muito linda.
Chapeuzinho Verde entendeu direitinho as intenções de sua mãe mas como ela ainda não sabia que podia discutir das idéias de sua mãe ela decidiu que era melhor ir. Ela também estava interessada em ir ver a vovó porque ela nem se lembrava direito da vovó, pois ela só tinha visto a vovó pela última vez em mil novecentos e noventa e pouco e ainda era século passado. Como será que está vovó? Será que ainda não morreu? Será que sente dores, reumatismo, osteoporose, caduquice e outras coisas de velho? Vovó devia estar uma quinquilharia...
Chapeuzinho Verde estava afoita pois queria porque queria ir logo ver vovó. Mesmo porque um dia lhe falaram que a casa que vovó morava era numa cidade muito diferente da cidade que eles moravam e ela já estava mesmo de saco cheio e queria conhecer novos ares. Um dia ela ficou sabendo pelo computador que as cidades que ainda não tinham Internet eram pacatas mas ela achava que isso não era verdade pois um outro dia ela tinha lido que os mais velhos são sábios porque já viveram bastante e entendem melhor as coisas da vida, então ela concluiu que a vovó não ia morar num lugar chato porque afinal ela era muito velha e devia entender muito das coisas da vida.
No dia da partida, Chapeuzinho Verde começou a arrumar todos os preparativos para a viagem. Queria saber se ia de avião, mas a sua mãe disse que não porque o avião podia cair na cabeça de alguém e ia machucar, e também tinha que a casa da vovó ficava numa cidade velha que nem tinha aeroporto mas não era tão longe assim, dava para ir de cavalo, mas cavalos estavam raros numa cidade como a de Chapeuzinho Verde e ela ia demorar três dias para achar um cavalo e mais três para a viagem, então Chapeuzinho Verde decidiu ir de carro e arrumou um motorista. O motorista do carro era um dos amantes preferidos da mãe de Chapeuzinho Verde que ficou toda emocionada e triste por vê-lo partir com seus bigodes charmosos, e no fundo também tinha um pouco de medo que ocorresse algum acidente no trânsito perigoso de hoje em dia e matasse o seu amante.
No dia da partida, Chapeuzinho Verde começou a arrumar todos os preparativos para a viagem. Deu um beijo no rosto do motorista e pediu para que ele rezasse para São Cristóvão antes da viagem, porque um dia ela ficou sabendo que São Cristóvão protege os motoristas que viajam. Pegou um par de meias novas e molhou pela última vez as suas plantinhas de estimação, que eram todas mudas e não reclamariam por água, e morreriam em seguida porque a mãe de Chapeuzinho Verde não gostava de plantas que não falavam, mas Chapeuzinho Verde gostava de falar com plantas. Chapeuzinho Verde pegou algumas comidas novas importadas para a vovó e pôs na mala no meio das roupas para que o calor derretesse os doces e fizesse a maior meleca em tudo e assim inutilizasse ao mesmo tempo as roupas e a comida.
O motorista vestia um terno azul escuro com uma gravata toda colorida e ficava parecendo um daqueles motoristas de filmes de Hollywood. Um dia Chapeuzinho Verde leu na Internet que era tudo mentira os filmes de Hollywood e que os personagens eram apenas interpretados por pessoas que eram chamadas de atores e era tudo falso, ensaiado, não tinha nada de verdade. E quando ela ficou sabendo que as pessoas recebiam dinheiro para fazer personagens achou tudo uma prostituição horrível de valores. Mas o motorista era mesmo bonito e a Chapeuzinho Verde que era uma menininha ainda adolescente mas muito linda não era boba e já entendia das coisas e pensava que sua mãe não era boba não e sabia muito bem escolher com quem amar.
O motorista parecia um daqueles galãs de cinema. Não parecia mais o motorista, parecia galã de cinema, e Chapeuzinho Verde viu que era melhor parar de pensar naquelas coisas porque senão ela ia acabar se apaixonando pelo motorista e o motorista era motorista de sua mãe e não ia ficar legal se ela roubasse o motorista de sua mãe mesmo que sua mãe fosse chata com ela às vezes. Então ela não olhava muito para o motorista durante toda a viagem e o bosque que ficava dos dois lados da estrada era sua distração, onde ela via coelhos saltitantes e via que a natureza ainda sobrevivia, às escondidas, no novo século.
O carro era meio velho mas era bonito porque era vermelho e Chapeuzinho Verde gostava muito de vermelho, cor do sangue de quem come carne e beterraba, cor do amor, se é que amor e paixão têm lá suas cores, que devem ser multicores, que devem ser cores de muitas cores, que devem ser a soma e a subtração de todas as cores. Tinha um som dentro do carro que tocava uma música do Beethoven que ela já tinha ouvido há algum tempo atrás, e a música era bonita porque trazia lembranças para ela porque todas as músicas trazem lembranças do que se passou, sejam alegres ou tristes.
O carro era meio velho mas era bonito porque tinha quatro rodas grandes, imponentes, botando medo em todos os outros carros que ficavam andando na estrada como que intrusos do caminho de Chapeuzinho Verde. A buzina do carro, ela não sabia o porquê, fazia Chapeuzinho Verde se lembrar de um quadro do Van Gogh que ela tinha visto na casa da vovó em mil novecentos e noventa e pouco e já fazia muito tempo para ela que era nova mas ela conseguia se lembrar do quadro. E ela foi olhando para a buzina e vendo a mão bonita do motorista enquanto ouvia Beethoven e pensava na injustiça do mundo em deixar um músico surdo amargurado e um pintor decepar a própria orelha ao invés de vender para o músico que precisa muito mais ouvir.
Quando ela chegou à cidade da casa da vovó ela viu que a cidade estava mesmo pequenininha, parecia que tinha parado com o tempo e um faroleiro que contava vantagem disse que a única coisa que crescia na cidade era o cemitério que também estava muito velho. Chapeuzinho Verde ficou com medo de que sua vovó estivesse debaixo de sete palmos de terra no cemitério velho. O carro era um carro velho no meio de uma cidade velha atrás de uma velha velha que podia estar debaixo de uma terra velha de um cemitério velho, mas ela não se importava em ser a única coisa nova, uma menininha ainda adolescente mas muito linda, no meio de tanta quinquilharia velha. E o motorista era bonito, garboso, galã.
Quando ela chegou à cidade ela se decepcionou e viu que o que ela tinha lido no computador devia ser mais verdade do que o que ela pensava a respeito dos velhos. A cidade era mesmo pacata e os velhos não deviam entender nada da vida porque sua vovó era bem velhinha e morava numa cidade velha e pacata. Então ela queria mesmo era saber quem era o dono da cidade para dar uma sova na cara dele pedindo explicações para toda a tristeza do lugar, afinal o dono da cidade tinha que arcar com suas responsabilidades e saber também onde era a casa da vovó de Chapeuzinho Verde, e Chapeuzinho Verde já estava começando a se preocupar com o estado de sua mala, que devia estar fedendo meleca de doces derretidos.
Foi quando o motorista se lembrou que sabia onde a vovó morava, e foi fácil de achar porque a cidade tinha poucas ruas, umas duas ou três só, e em frente de toda casa tinha uma plaquinha com o nome de quem morava em vez de um simples número como na cidade normal. E na frente da casa da vovó de Chapeuzinho Verde estava escrito que lá morava a vovó de Chapeuzinho Verde, como se a vovó de Chapeuzinho Verde não tivesse nome nenhum e sua existência só se desse por ser a vovó de Chapeuzinho Verde. Chapeuzinho Verde pensou que isso fosse mimo de vovó e entrou correndo abrindo portão e porta e deixando cair mala e comidas novas importadas derretidas pelo calor e melecadas no meio das roupas.
Foi quando dentro da casa tinha um lobo mau parecido com aqueles das histórias da carochinha mas ele estava armado com uma pistola automática e tinha acabado de matar a vovó para vender os órgãos velhos da vovó para algum traficante de órgãos. Chapeuzinho Verde foi ficando com o rosto verde e verde e verde de raiva e medo e gritou bem alto estourando os vidros e os tímpanos do lobo e do motorista. Então o lobo mau se matou com um tiro no coração porque ele era pior do que o Beethoven e não suportaria a idéia de viver surdo. Então o motorista entrou lá dentro e surdo também decidiu se matar. Então a Chapeuzinho Verde percebeu que não saberia voltar sozinha para casa e achou legal aquele monte de gente morta e decidiu morrer também, só um pouquinho, para ver se era bom, pelo menos para experimentar, e se matou também.

Um comentário:

Giovanna Longo disse...

chapeuzinho verde é coisa de palmeirense.