6.8.07

Ela não está comigo

Faltam dentes na boca de Nelson, que mora na rua há mais de um ano. Faz quinze dias que não toma banho, diz ele, e não comeu nada hoje. Vestido com trapos, fede. No centro da cidade, não mendiga porque acha indecente; desconversa de como sobrevive. E exala um bafo de quem só consegue suportar o frio – o termômetro marca pouco mais de seis graus às três horas da madrugada – com muita cachaça.

Em seus olhos, a noite é imensa, e triste, e fria. E perigosa. Não dá para dormir direito, é preciso vigiar. O sem-teto em que habita guarda a história paulistana. Uma hora é o Pátio do Colégio, noutra os arredores da Estação da Luz, às vezes está em frente ao Teatro Municipal... Nelson conhece São Paulo, São Paulo é sua casa. Eis o verdadeiro cidadão, aquele que dorme com a cidade, come-a.

Quando Marinês chega ali e vai procurar se esquentar sob o mesmo cobertor surrado de Nelson, ela já trabalhou um bocado. Foram seis clientes das sete da noite àquela hora. Um pagou o dobro, para ter também o cuzinho. Os outros quiseram só o arroz-feijão. Marinês, trinta e quatro anos, aparenta quarenta e cinco. A pele está cansada, o corpo está cansado, e nem a buceta é mais a mesma. Todos os dias é o mesmo ritual. Pagamento adiantado, vinte reais a fodinha básica, meia-hora ou até o cliente gozar, o que acontecer primeiro prevalece. Então leva o sujeito ao quarto muquifo. Uma cama baixa, colchão mole. Fecha a janela que ficara aberta para arejar um pouco o fedor de porra ressequida, e tira a roupa, mecânica. Rebola se esfregando no pau do cara, veste a camisinha rapidamente e se senta. Diz que não sente nada mais. E já perdeu a conta de quantos foram em sua vida, pudera.

Marinês nunca trepou com Nelson. A relação deles é muito carinho para caber sexo. E Marinês não gosta de levar trabalho para casa.

Ela se acha uma mulher de sorte, pois é das poucas que toma banho, mais de uma vez por dia inclusive, das pessoas que moram nas ruas. É a vantagem embutida em seu serviço. Banho por conta da casa.

Nelson ultimamente tem passado o dia na linha B da CPTM. Ele e mais cinco ambulantes. Organizados, respeitam um rodízio em cada vagão. Para apregoarem seus produtos, um aguarda o outro. Sempre quem começa leva vantagem. Nelson vende amendoinzinhos, cinqüenta centavos. E é com Mozart ou Beethoven ao fundo – agora o trem toca música clássica, som ambiente, bem baixinho para ninguém reparar – que ele grita:

- Cinqüenta centavos o amendoim crocante, só cinqüenta centavos.

Lizete vende guardanapos bordados a dois reais, Ademir vende livrinhos de colorir para que pais com consciência pesada por deixarem os filhos sós o dia todo se redimam (um e noventa e nove), Gorete vende chips (um real), Odair vende canetas (três por um real) e Josias vende chocolates (um e cinqüenta cada barra).

Tem dia que Nelson não resiste e come um pacote de amendoinzinhos. Mas só de vez em quando. É preciso vender dez para pagar um.

Hoje, ao chegar em casa, após comprar um amendoinzinho de Nelson e foder com Marinês, desesperei-me ao não encontrar a chave. Ela não está comigo – será que um dia esteve? E assim, preso do lado de fora, voltei a me deparar com eles pelo mundo. Preso do lado de fora.

2 comentários:

Anônimo disse...

Li alguma coisa parecida com esse texto essa semana, em uma conceituada publicação semanal..rsrs
Que bom que aqui a gente tem a dose de realismo que não cabe nas páginas das revistas. Como seria bom o mundo em que a verdade é dita sem mais palavras.

Anônimo disse...

*meias palavras