28.5.08

Lua cheia de dor

Eu preferia as noites de lua cheia. Na boléia, mãos na direção, olhar atento para espantar o sono. O pára-brisa era a minha moldura a enquadrá-la, exuberante, alumiando a estrada com um azul-noite tão bonito. Vencia assim a quilometragem. Do interior de São Paulo a Manaus. De Manaus a Quixeramobim. De Quixeramobim a Saquarema. De lá pra cá, de Oiapoque a Chuí. Comigo não tinha essa de caminho ruim: enfrentava estrada boa, buraqueira, terra batida, lama.

Naquele tempo a gente já reclamava da situação difícil, mas havia uma porção de belezas. Ninguém falava de aids, essa tal internet nem existia, não tinha pedágio e os amores custavam menos, bem menos. Eu botava uma fita do Roberto Carlos e ia adentrando o Brasil. Preferia as noites de lua cheia, na boléia, sonhando com o azul-noite que nem Nossa Senhora a rogar por mim.

Via a família mês sim, mês não. Aquela história de quando dava. Na estrada até que arranjava amores de ocasião, em casas de luz vermelha. Mas tinha saudades mesmo era de Janice, com quem me casei em 6 de dezembro de 1961. E da filharada – Afonso, Roberto e Felipe, cada vez maiores, correndo ao meu encontro quando ouviam o ronco do Mercedes 1113 vermelho ainda dobrando a esquina. Saudades e a dor de não ter podido vê-los crescer de perto. Cicatriz que nunca sumirá.

- Pai, entrei na escola!

- Pai, quero ser caminhoneiro igual o senhor!

- Paiê, por que o senhor fica tanto tempo fora?

Preferia as noites de lua cheia. Saía nas pontas dos pés, para não acordá-los. Evitava a despedida. E lá estava de novo rodando, carga cheia. Duas paradas por dia para esquentar o rango. Outra para dormir na cama improvisada. Dezesseis, dezoito horas ao volante, as cercas correndo sem parar nas laterais da pista, cidadezinhas passando, sol nascendo, povoados surgindo e sumindo rápido na janela, sol se pondo.

Corria o ano de 1969 do qual nunca me esquecerei. Quando eu parei em um postinho meia-boca em Rondonópolis, todo mundo se amontoava em frente à televisão. A imagem, ruim, meio desfocada, de um cinzento difícil de discernir as coisas, mostrava um homem pisando na lua. Em câmera lenta.

Primeiro não acreditei.

Depois, me impressionei com os americanos.

Por fim, senti-me roubado. Traído. Era minha lua cheia, afinal. Minha companheira de labuta, aquela que alumiava minhas quilometragens. Desnudada e deflorada por impiedosos e saltitantes homens de roupas pesadas. Não, não podia ser verdade.

Atônito, comprei umas fichas e corri ligar para Janice. Queria avisá-la. Mandar os meninos se arrumarem na casa de algum vizinho com televisão. Precisavam ver aquilo: era um momento histórico.

Não sei como se mata uma família. Não sei por quê se mata uma família. Não entendo nada de armas de fogo, não coleciono inimigos, não sou homem de posses. Mas quando, depois de insistir três vezes até o último toque, quem atendeu ao telefone foi o pai de Janice, numa choradeira só, percebi que a lua jamais teria a mesma graça depois daquele dia em que homens a pisoteavam.

A Terra? A Terra ainda era azul.

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