30.5.08
29.5.08
28.5.08
Lua cheia de dor
Eu preferia as noites de lua cheia. Na boléia, mãos na direção, olhar atento para espantar o sono. O pára-brisa era a minha moldura a enquadrá-la, exuberante, alumiando a estrada com um azul-noite tão bonito. Vencia assim a quilometragem. Do interior de São Paulo a Manaus. De Manaus a Quixeramobim. De Quixeramobim a Saquarema. De lá pra cá, de Oiapoque a Chuí. Comigo não tinha essa de caminho ruim: enfrentava estrada boa, buraqueira, terra batida, lama.
Naquele tempo a gente já reclamava da situação difícil, mas havia uma porção de belezas. Ninguém falava de aids, essa tal internet nem existia, não tinha pedágio e os amores custavam menos, bem menos. Eu botava uma fita do Roberto Carlos e ia adentrando o Brasil. Preferia as noites de lua cheia, na boléia, sonhando com o azul-noite que nem Nossa Senhora a rogar por mim.
Via a família mês sim, mês não. Aquela história de quando dava. Na estrada até que arranjava amores de ocasião, em casas de luz vermelha. Mas tinha saudades mesmo era de Janice, com quem me casei em 6 de dezembro de 1961. E da filharada – Afonso, Roberto e Felipe, cada vez maiores, correndo ao meu encontro quando ouviam o ronco do Mercedes 1113 vermelho ainda dobrando a esquina. Saudades e a dor de não ter podido vê-los crescer de perto. Cicatriz que nunca sumirá.
- Pai, entrei na escola!
- Pai, quero ser caminhoneiro igual o senhor!
- Paiê, por que o senhor fica tanto tempo fora?
Preferia as noites de lua cheia. Saía nas pontas dos pés, para não acordá-los. Evitava a despedida. E lá estava de novo rodando, carga cheia. Duas paradas por dia para esquentar o rango. Outra para dormir na cama improvisada. Dezesseis, dezoito horas ao volante, as cercas correndo sem parar nas laterais da pista, cidadezinhas passando, sol nascendo, povoados surgindo e sumindo rápido na janela, sol se pondo.
Corria o ano de 1969 do qual nunca me esquecerei. Quando eu parei em um postinho meia-boca em Rondonópolis, todo mundo se amontoava em frente à televisão. A imagem, ruim, meio desfocada, de um cinzento difícil de discernir as coisas, mostrava um homem pisando na lua. Em câmera lenta.
Primeiro não acreditei.
Depois, me impressionei com os americanos.
Por fim, senti-me roubado. Traído. Era minha lua cheia, afinal. Minha companheira de labuta, aquela que alumiava minhas quilometragens. Desnudada e deflorada por impiedosos e saltitantes homens de roupas pesadas. Não, não podia ser verdade.
Atônito, comprei umas fichas e corri ligar para Janice. Queria avisá-la. Mandar os meninos se arrumarem na casa de algum vizinho com televisão. Precisavam ver aquilo: era um momento histórico.
Não sei como se mata uma família. Não sei por quê se mata uma família. Não entendo nada de armas de fogo, não coleciono inimigos, não sou homem de posses. Mas quando, depois de insistir três vezes até o último toque, quem atendeu ao telefone foi o pai de Janice, numa choradeira só, percebi que a lua jamais teria a mesma graça depois daquele dia em que homens a pisoteavam.
A Terra? A Terra ainda era azul.
Naquele tempo a gente já reclamava da situação difícil, mas havia uma porção de belezas. Ninguém falava de aids, essa tal internet nem existia, não tinha pedágio e os amores custavam menos, bem menos. Eu botava uma fita do Roberto Carlos e ia adentrando o Brasil. Preferia as noites de lua cheia, na boléia, sonhando com o azul-noite que nem Nossa Senhora a rogar por mim.
Via a família mês sim, mês não. Aquela história de quando dava. Na estrada até que arranjava amores de ocasião, em casas de luz vermelha. Mas tinha saudades mesmo era de Janice, com quem me casei em 6 de dezembro de 1961. E da filharada – Afonso, Roberto e Felipe, cada vez maiores, correndo ao meu encontro quando ouviam o ronco do Mercedes 1113 vermelho ainda dobrando a esquina. Saudades e a dor de não ter podido vê-los crescer de perto. Cicatriz que nunca sumirá.
- Pai, entrei na escola!
- Pai, quero ser caminhoneiro igual o senhor!
- Paiê, por que o senhor fica tanto tempo fora?
Preferia as noites de lua cheia. Saía nas pontas dos pés, para não acordá-los. Evitava a despedida. E lá estava de novo rodando, carga cheia. Duas paradas por dia para esquentar o rango. Outra para dormir na cama improvisada. Dezesseis, dezoito horas ao volante, as cercas correndo sem parar nas laterais da pista, cidadezinhas passando, sol nascendo, povoados surgindo e sumindo rápido na janela, sol se pondo.
Corria o ano de 1969 do qual nunca me esquecerei. Quando eu parei em um postinho meia-boca em Rondonópolis, todo mundo se amontoava em frente à televisão. A imagem, ruim, meio desfocada, de um cinzento difícil de discernir as coisas, mostrava um homem pisando na lua. Em câmera lenta.
Primeiro não acreditei.
Depois, me impressionei com os americanos.
Por fim, senti-me roubado. Traído. Era minha lua cheia, afinal. Minha companheira de labuta, aquela que alumiava minhas quilometragens. Desnudada e deflorada por impiedosos e saltitantes homens de roupas pesadas. Não, não podia ser verdade.
Atônito, comprei umas fichas e corri ligar para Janice. Queria avisá-la. Mandar os meninos se arrumarem na casa de algum vizinho com televisão. Precisavam ver aquilo: era um momento histórico.
Não sei como se mata uma família. Não sei por quê se mata uma família. Não entendo nada de armas de fogo, não coleciono inimigos, não sou homem de posses. Mas quando, depois de insistir três vezes até o último toque, quem atendeu ao telefone foi o pai de Janice, numa choradeira só, percebi que a lua jamais teria a mesma graça depois daquele dia em que homens a pisoteavam.
A Terra? A Terra ainda era azul.
27.5.08
Terça sonora
"Regrets, I've had a few, but then again, too few to mention
I did, what I had to do, and saw it through, without exemption"
26.5.08
Para começar a semana
"Eu não sou um vendedor de livros: eu os escrevo para atacar os hipócritas, mas para mim tanto faz se as pessoas os compram ou não os compram."
Fernando Vallejo Rendón (1942- )
25.5.08
23.5.08
22.5.08
21.5.08
Coleções #2
- Aspas fortes;
- Parênteses fracos;
- Interrogações efêmeras;
- Reticências constantes;
- Ex-clamação.
Tragédia radioativa
Há um retrato na parede
Que fica dobrando minhas lágrimas:
Largo as rimas que a alma pede
E vou chorar pelas meninas
mortas em Chernobyl
E aquelas coisas tortas que todo o mundo viu.
Jogo fora Dostoiévski, Tolstoi...
Meu espírito apenas rói
lembranças tristes:
Crianças famintas chorando de câncer,
Plantas com pintas calando o amanhecer,
Adultos ruços de soluços russos.
Parece um daqueles filmes de Kurosawa!
Uma prece, náuseas, quem nos redime?
Tamanho crime sem explicação
arranha a História
e rasga a memória
em mil pedacinhos querendo perdão.
Que fica dobrando minhas lágrimas:
Largo as rimas que a alma pede
E vou chorar pelas meninas
mortas em Chernobyl
E aquelas coisas tortas que todo o mundo viu.
Jogo fora Dostoiévski, Tolstoi...
Meu espírito apenas rói
lembranças tristes:
Crianças famintas chorando de câncer,
Plantas com pintas calando o amanhecer,
Adultos ruços de soluços russos.
Parece um daqueles filmes de Kurosawa!
Uma prece, náuseas, quem nos redime?
Tamanho crime sem explicação
arranha a História
e rasga a memória
em mil pedacinhos querendo perdão.
20.5.08
sonhos de um tempo
vamos embora
joga fora teu relógio
tua hora já acabou
queima os sonhos na lareira
mas não leva o que restar
a fumaça cuida das lembranças
um quê caetânico vai olodunzar os teus quadris
e nas curvas do teu corpo eu vou sorrir
voltar a sorrir
agora vamos embora
que o instante urge
persiste a clemência dos ateus
sobra a fugacidade da vida
e os beijos surdos da adolescência
sente a vibração do ar
e lembra como é bom não sonhar
em tempos de pesadelo
lembra que o medo é brinquedo
e as armas também são de brinquedo
foge agora
se não quer ir embora comigo
e sei que num peito abrigo
teus sonhos voltarão tristes...
joga fora teu relógio
tua hora já acabou
queima os sonhos na lareira
mas não leva o que restar
a fumaça cuida das lembranças
um quê caetânico vai olodunzar os teus quadris
e nas curvas do teu corpo eu vou sorrir
voltar a sorrir
agora vamos embora
que o instante urge
persiste a clemência dos ateus
sobra a fugacidade da vida
e os beijos surdos da adolescência
sente a vibração do ar
e lembra como é bom não sonhar
em tempos de pesadelo
lembra que o medo é brinquedo
e as armas também são de brinquedo
foge agora
se não quer ir embora comigo
e sei que num peito abrigo
teus sonhos voltarão tristes...
19.5.08
Novo hino de obrigações
prometo meter a meta na gaveta
pra que o objeto-meta não se meta comigo
prometo ser só mais um amigo...
prometo matar o muito detrás da moita
pra que o muito-matado não se mate depois
quem se suicida no fundo é um covarde
(um covarde corajoso!)
no mata-mata da vida bandida que nos mutila
um surto de metas contra-ataca; voam do teto
as gavetas lacradas cheias de objetos não têm vez
é hora de matarmos os suicidas escondidos nas moitas.
pra que o objeto-meta não se meta comigo
prometo ser só mais um amigo...
prometo matar o muito detrás da moita
pra que o muito-matado não se mate depois
quem se suicida no fundo é um covarde
(um covarde corajoso!)
no mata-mata da vida bandida que nos mutila
um surto de metas contra-ataca; voam do teto
as gavetas lacradas cheias de objetos não têm vez
é hora de matarmos os suicidas escondidos nas moitas.
18.5.08
16.5.08
15.5.08
14.5.08
13.5.08
12.5.08
A fazer #2
- Escrever cartinha ao Papai Noel;
- Sonhar com Deus;
- Entoar clássicos do Beatles;
- Correr da chuva;
- Morrer calado.
Para começar a semana
"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem com seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."
Graciliano Ramos de Oliveira (1892-1953)
11.5.08
9.5.08
A fazer #1
- Barbear meus pensamentos;
- Colecionar coleções;
- Caçar sacis de duas pernas;
- Transar com uma orquestra;
- Solucionar solecismos.
8.5.08
Coleções #1
- Lágrimas inventadas;
- Fotografias de sonhos;
- Desejos repreendidos;
- Últimos momentos;
- Gols perdidos, na trave.
6.5.08
5.5.08
Para começar a semana
"Estou no palco sozinho.
Sei que a peça vai começar daí a instantes, mas ignoro completamente meu papel, o que tenho a fazer e sobretudo a dizer.
O script está na minha mão, mas não consigo lê-lo: as letras se embaralham e o sentido do texto muda sem que haja qualquer concatenação. Tenho a vaga idéia de que um casal (dois atores famosos e tarimbados) deve chegar a qualquer momento e então eu terei que dirigir-lhes a palavra e começar a atuar.
Pela janela vejo dois vultos suspeitos tramando alguma coisa e num deles reconheço o ator com quem contracenarei.
O casal logo depois entra no palco, sem se anunciar, e eu, no desespero, chego a pedir que espere que eu leia ao menos as primeiras palavras do meu papel.
A cortina se levanta e eu decido improvisar tudo em tom humorístico e sem sentido."
Walter Campos de Carvalho (1916-1998)
Sei que a peça vai começar daí a instantes, mas ignoro completamente meu papel, o que tenho a fazer e sobretudo a dizer.
O script está na minha mão, mas não consigo lê-lo: as letras se embaralham e o sentido do texto muda sem que haja qualquer concatenação. Tenho a vaga idéia de que um casal (dois atores famosos e tarimbados) deve chegar a qualquer momento e então eu terei que dirigir-lhes a palavra e começar a atuar.
Pela janela vejo dois vultos suspeitos tramando alguma coisa e num deles reconheço o ator com quem contracenarei.
O casal logo depois entra no palco, sem se anunciar, e eu, no desespero, chego a pedir que espere que eu leia ao menos as primeiras palavras do meu papel.
A cortina se levanta e eu decido improvisar tudo em tom humorístico e sem sentido."
Walter Campos de Carvalho (1916-1998)
4.5.08
Versos tristes para um coração vazio
Como o céu está triste esta noite!
Posso escrever que a vida é bela, que te amo, que Deus existe...
Mas a noite é triste: as estrelas sequer piscam cúmplices
E no silêncio respinga um orvalho quase vácuo.
Como o céu está triste esta noite!
Vem um duende, cai um cometa, alguém sonha sozinho...
Tem gente que estabelece metas e prazos para o dia seguinte
E na imensidão nem vela nem lua nem nada ilumina.
Como o céu está triste esta noite!
Sussurro-te um poema baixinho ao ouvido, ouço um estampido
Inerte como um mundo que se acaba depois do amor
E na mente desdobram-se trouxas de ilusão.
Como o céu está triste esta noite!
Ninguém abre a porta mas as janelas devem ter frestas
Vou gritar: olha lá a vidraça quebrada! Que desassossego!
E no chão uma planta anda adunca, cabisbaixa.
Como o céu está triste esta noite!
A esperança nervosa só chora
Com um anel quebrado e um coração partido na mão
Vou-me embora de volta pra casa.
Posso escrever que a vida é bela, que te amo, que Deus existe...
Mas a noite é triste: as estrelas sequer piscam cúmplices
E no silêncio respinga um orvalho quase vácuo.
Como o céu está triste esta noite!
Vem um duende, cai um cometa, alguém sonha sozinho...
Tem gente que estabelece metas e prazos para o dia seguinte
E na imensidão nem vela nem lua nem nada ilumina.
Como o céu está triste esta noite!
Sussurro-te um poema baixinho ao ouvido, ouço um estampido
Inerte como um mundo que se acaba depois do amor
E na mente desdobram-se trouxas de ilusão.
Como o céu está triste esta noite!
Ninguém abre a porta mas as janelas devem ter frestas
Vou gritar: olha lá a vidraça quebrada! Que desassossego!
E no chão uma planta anda adunca, cabisbaixa.
Como o céu está triste esta noite!
A esperança nervosa só chora
Com um anel quebrado e um coração partido na mão
Vou-me embora de volta pra casa.
2.5.08
1.5.08
Instante da estante
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
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