26.8.07

Irene

Com triste ironia
Irene sorria.
Um pedaço de poema
no pecado entre as pernas
a lhe lembrar nas retinas
da contrita rotina:
Irene sorria.

Sempre juízo,
Irene sorria.
E sem prejuízo
na data da festa do santo
tomava sopa de incunábulos
saboreando os vínculos
em suave penitência.

No íntimo, intimidada,
Irene sorria
porque seria práxis chorar
lágrimas vermelhas com aroma
de amora.
Irene só sorria
como quem inventasse e ventasse.

Tentativa n.º 8

Quero ser uma cebola e, anticola, desprender cada camada
em mim só
como a bola que, tanto ser chutada, despedaça seus gomos
aquilo que somos.

Uma gota qualquer de orvalho
permaneça, sábia,
até que eu amealhe uma folha, outra folha...

Quero ser um pó de cebola
um poema
um problema.
Uma negação.

19.8.07

Alfabetólio

Adalgisa amava Bartolomeu que era amigo de Carlos que ficava com Daniela que gostava muito de Eric que batia em Fábio que era apaixonado por Gustavo que cantava com Hércules que beijava Iara que transava com Juliana que jogava vôlei com Kátia que sonhava com Luís que sorria para Mário que nadava com Nádia que piscava para Osvaldo que bebia com Pedro que competia com Quirino que saía com Rosana que morava com Sara que amamentava Trajano que queria ser Umberto que abraçava Viviane que se fantasiava de William que colecionava miniaturas de Xaiane que matou Yuri e Zélia.

17.8.07

Bandeira

AGORA A ROSA ACABOU
GORA A ROSA ACABOU A
ORA A ROSA ACABOU AG
RA A ROSA ACABOU AGO
A A ROSA ACABOU AGOR
A ROSA ACABOU AGORA
A ROSA ACABOU AGORA
A ROSA ACABOU AGORA
A A ROSA ACABOU AGOR
RA A ROSA ACABOU AGO
ORA A ROSA ACABOU AG
GORA A ROSA ACABOU A
AGORA A ROSA ACABOU

16.8.07

Agora a rosa acabou
Gora a rosa acaboua
Ora a rosa acabouag
Ra a rosa acabouago
A a rosa acabouagor

15.8.07

Senil

Ainda na ativa
O velho sorri:
expectativa

12.8.07

Pedaços nus

O relógio, com sua lógica irrepreensível, marcava duas em ponto quando Suzana, a louca, desligou o despertador para não ser incomodada às 7:43, como era de praxe, todas as manhãs, chuvosas ou de bom-humor, de frio ou até de feriado. Foi quando, sem qualquer aviso de antemão que provasse o seu orgulho ou algo que o valha, pulou-lhe da garganta um ovo que botou um ser penado, com asa e tudo:

- Cocoricó - resmungou, entre tantos.

- Cacarejo eu - respondeu, só.

E a verdade que não foi dita é que a partir deste instante, Suzana, a louca, passou a escrever sonhos e retirar o sentido dos tons de cinza nuvem para jogá-los longe junto do sol ocre e solitário a rir das gentes.

- Devia parar de tostar nossas peles, pelamordedeus, devia parar. Ainda iremos acabar todinhos à passarinho.

Então voava.

*****

Sempre amargo o pressentimento de abrirei a janela e verei uma anta correndo para o mato ou um macaco suspirando pelos cantos de todos os galhos. Até ontem, desilusão por jamais me deparar com tais fragmentos oníricos. Sai sangue.

*****

Não passava uma madrugada inteira sem trepar, ainda que fosse só uma fodinha rápida. Não agüentava, jamais agüentaria suportar aquele tesão que brotava em seu corpo de dezenove anos. Ora, se Elenice aceitara o fardo de ser sua mulé, agora que não rogasse arrego. E nada de dores de cabeça ou flechadas no coração. Nada. Não engolia, isso, jamais.

Era, sim, cabra macho sim sinhô. Forte e rijo, abusava. Mesmo que Elenice resistisse, vez sim vez não, no começo. Ah, quando o troço embalava era gostoso de dar dó.

E ela gemia de quatro em seu quarto, a três quadras ou pouco mais da igreja matriz, quando os sinos repicavam duas horas da matina.

*****
Tantos sonhos a atrapalhar o sono, pirações sem nexo, que às nove e trinta e dois ela começava a pesadelar:

- Me dá uma sacola?
- Sacola?
- É. Pra guardar mais um sonho, que as minhas acabaram.

*****

- Como você vai dormir?

- Com meias brancas.

E só.
DNA
and
NDA

11.8.07

Pequeno texto acerca dos negócios (ou como simplificar o mundo que anda tão complicado)

Meu negócio é vender palavras. O negócio de uma construtora é vender prédios. Para unirmos esses dois pontos, precisamos de intermediários. O negócio dos intermediários é ganhar dinheiro fazendo pontes. São muitos. São muitas. Pontes são construídas por algumas pessoas tristes para que outras se atirem lá de cima.

Para comprar um pedaço de um prédio, primeiro preciso buscar um corretor. O negócio do corretor é vender conversa-fiada. No caso, em sua lábia estão embutidas as vantagens da aquisição de um pedaço de um prédio. Da incorporadora, já que seu negócio é justamente vender esses pedaços. Compro um.

Para pagá-la, preciso de dinheiro. Recorro ao banco. O negócio do banco é vender dinheiro. Bem caro. Para conseguir comprar dinheiro do banco, como não entendo nada de papelada, é preciso contratar um agente. No caso, uma agente. Agentes são pessoas cujo negócio é vender atalhos. Porque conhecem gente aqui e acolá e, mais importante, têm tempo para não se estressarem com a burocracia das coisas. São profissionais da chatice.

No meio do caminho há as máquinas de xerox - que têm como negócio vender cópias -, os gerentes de banco e seu negócio de enrolar clientes, as atendentes de telemarketing e seu negócio-mania de deixar a todos esperando com uma musiquinha renitente. E tem a religião, cujo negócio é nos lembrar de Deus. E tem Deus. O negócio de Deus é salvar o mundo. Meu mundo: um apartamento financiado.

Depois entrarão em cena o marceneiro mercenário - e seu negócio: dar um acabamento a árvores mortas para que elas caibam na sala de estar -, o carinha da mudança - e seu negócio de quebrar espelhos no leva-e-traz - e até as Casas Bahia - que têm um negócio maneiro de vender tudo à prestação.

Para isso tenho de vender mais palavras. Por falta de opção, já que não sei nem definir outras coisas.

7.8.07

Do poste ao rótulo, do parapeito à rótula

Coleciono abismos, pelo prazer de dividir humanidades:
de um lado os humanos, de outro os amenos - espremidos
no menos espaço possível entre meus braços e o aperto.

Hoje em dia, a eternidade não basta. É preciso alinhar
as paralelas, alimentar os páras, ensimesmar o bastante:
bestas são bostas endeusadas no abissal planeta Terra.

Se houvesse outra vida, colecionaria borboletas ou cartas
de baralho. São mais fáceis de manusear, contar, guardar.
Além disso, não há dúvida de que eles são o que se hão.

6.8.07

Ela não está comigo

Faltam dentes na boca de Nelson, que mora na rua há mais de um ano. Faz quinze dias que não toma banho, diz ele, e não comeu nada hoje. Vestido com trapos, fede. No centro da cidade, não mendiga porque acha indecente; desconversa de como sobrevive. E exala um bafo de quem só consegue suportar o frio – o termômetro marca pouco mais de seis graus às três horas da madrugada – com muita cachaça.

Em seus olhos, a noite é imensa, e triste, e fria. E perigosa. Não dá para dormir direito, é preciso vigiar. O sem-teto em que habita guarda a história paulistana. Uma hora é o Pátio do Colégio, noutra os arredores da Estação da Luz, às vezes está em frente ao Teatro Municipal... Nelson conhece São Paulo, São Paulo é sua casa. Eis o verdadeiro cidadão, aquele que dorme com a cidade, come-a.

Quando Marinês chega ali e vai procurar se esquentar sob o mesmo cobertor surrado de Nelson, ela já trabalhou um bocado. Foram seis clientes das sete da noite àquela hora. Um pagou o dobro, para ter também o cuzinho. Os outros quiseram só o arroz-feijão. Marinês, trinta e quatro anos, aparenta quarenta e cinco. A pele está cansada, o corpo está cansado, e nem a buceta é mais a mesma. Todos os dias é o mesmo ritual. Pagamento adiantado, vinte reais a fodinha básica, meia-hora ou até o cliente gozar, o que acontecer primeiro prevalece. Então leva o sujeito ao quarto muquifo. Uma cama baixa, colchão mole. Fecha a janela que ficara aberta para arejar um pouco o fedor de porra ressequida, e tira a roupa, mecânica. Rebola se esfregando no pau do cara, veste a camisinha rapidamente e se senta. Diz que não sente nada mais. E já perdeu a conta de quantos foram em sua vida, pudera.

Marinês nunca trepou com Nelson. A relação deles é muito carinho para caber sexo. E Marinês não gosta de levar trabalho para casa.

Ela se acha uma mulher de sorte, pois é das poucas que toma banho, mais de uma vez por dia inclusive, das pessoas que moram nas ruas. É a vantagem embutida em seu serviço. Banho por conta da casa.

Nelson ultimamente tem passado o dia na linha B da CPTM. Ele e mais cinco ambulantes. Organizados, respeitam um rodízio em cada vagão. Para apregoarem seus produtos, um aguarda o outro. Sempre quem começa leva vantagem. Nelson vende amendoinzinhos, cinqüenta centavos. E é com Mozart ou Beethoven ao fundo – agora o trem toca música clássica, som ambiente, bem baixinho para ninguém reparar – que ele grita:

- Cinqüenta centavos o amendoim crocante, só cinqüenta centavos.

Lizete vende guardanapos bordados a dois reais, Ademir vende livrinhos de colorir para que pais com consciência pesada por deixarem os filhos sós o dia todo se redimam (um e noventa e nove), Gorete vende chips (um real), Odair vende canetas (três por um real) e Josias vende chocolates (um e cinqüenta cada barra).

Tem dia que Nelson não resiste e come um pacote de amendoinzinhos. Mas só de vez em quando. É preciso vender dez para pagar um.

Hoje, ao chegar em casa, após comprar um amendoinzinho de Nelson e foder com Marinês, desesperei-me ao não encontrar a chave. Ela não está comigo – será que um dia esteve? E assim, preso do lado de fora, voltei a me deparar com eles pelo mundo. Preso do lado de fora.