31.8.05

2

Seu Espiridião tem uma filha linda. Cabelos longos, encaracolados. Estudante universitária, 21 anos. Corpo esbelto. Sorriso no rosto. Soraya, o nome dela.

Soraya, desde pequena, sofre com a síndrome do prato bem-organizado. Isso significa que ela não admite almoçar se o caldo do feijão sujar o arroz branquinho. Ou se o molho do bife escorrer na salada. No prato de Soraya, tudo separadinho.

Soraya é daquelas pessoas que se dão bem no bandejão.

1

Seu Espiridião tem 49 anos. Em dias normais, é um cidadão pacato: conta piadas preconceituosas, joga truco com os amigos, bebe uma cervejinha, trabalha feito um condenado, reza pra chegar logo sexta-feira, torce para o Corinthians. Torce para o Corinthians?

Sim, e aqui temos um gancho perfeito para os dias anormais do Seu Espiridião. Não, desta vez não estamos criticando o time que se tornou filial amarelinha do Boca. Não, desta vez não vamos fazer nenhum trocadilho politicamente incorreto. Não e não. O problema está é na cabeça do Seu Espiridião.

Homem de superstições estranhas, ele tem lá suas manias. Dorme sempre com o travesseiro virado do mesmo lado, escova os dentes sempre de baixo para cima, mostra sempre dois no par ou ímpar, jamais leva velas ao cemitério, jamais cutuca o nariz em público e, principalmente, nunca, mas nunca mesmo, fala três vezes seguidamente a mesma palavra. Superstições estranhas, ele tem lá suas manias.

- Princípios! – corrige Seu Espiridião, pronunciando pausadamente cada sílaba, como a conferir ênfase aos seus, ahn, princípios – Princípios! – repete ele, mas pára na segunda vez, para não ferir os seus, ahn, princípios.

30.8.05

Avesso a comemorações, cutucava o embigo com o próprio ego.
Sempre fora assim: encontrava multidões, respeitava; perseguia o éter que não havia; chorava pelos cantos, no fundo, no fim do dia.

Hoje acordou assustado. Ego não existia mais.

29.8.05

Tédio na Malásia

Dentro do circo há um mágico indefeso e inábil
cheio de truques repetidos e sonhos já sonhados.
Dentro do circo há um trailler quebrado
e uma caixa vazia.

Tédio.
A manhã não tem sol.
A noite não chega.
O trabalho não acaba.

Tédio.
O texto é sem graça, por isto o blog merece o que não tem.
Não vem.
Não. Sem.

28.8.05

Casal Perfeito?

Tolo eu de sempre acreditar que a Mãe Natureza era bem-casada com o Pai Tempo.

(da inútil série Impossibilidades de Convivência: Espaço-Tempo)

26.8.05

Estultície

Um poema não rima que nem pão com mortadela ou senão nos olhos dela. Um poema não rima.

Poema é a lágrima.

25.8.05

Jornais de Papel

Havia, num tempo.
E as pessoas paravam para ler. E as pessoas liam. E as pessoas passavam.

***

Armando mandou Amanda amar Amado. Amanda amou, amou e amou. Amado aproveitou o sentir-se amado, como nunca havia antes. Amanda amou: cuidava, ouvia, conversava.
Na cama eram um só. Não só na cama.
Na mesa eram dois pratos.
No banho, um chuveiro.
Quando Armando voltou da América, Amanda não quis saber mais dele.

24.8.05

Estresse

Fadigado, tinha olhos cheios de azucrinação. Não eram azuis, mas para ver melhor sabiam tudo de que há de ser. Havia. Sabiam. Conquistamos.

Sempremente me sinto como uma laranja que virou suco no mês passado. Caso bagaço houvesse.

Pode vender

Agilberto agia por pura obsessão na construção dos nadas de arame. Artista nato, conduzia os fios como se jamais fossem se enrolar. Como se fossem paralelas infinitas.

Depois fazia de conta que era tudo parte da vida e botava à venda.

23.8.05

De Aniversário

Deu a ela uma rosa dos ventos, que prontamente se foi despetalada em bem-me-queres.
Desnorteada, viu-se de cruz em punho para endeusar o que quisesse:
- Saravá, poesia! Abra e cadabra que hoje eu quero tropeçar nas velinhas de bolo novo!

Deu a ela um bolo para morar no porta-retratos de família ao lado da bola.
Ela chutou e marcou cinco gols de placa.
Era MHB 2005 e tinha Rio de Janeiro - RJ escrito em cima.

Deu a ela um pouco de esperança plantada num vaso. Era para ficar ao lado da janela.
Mas deram a descarga.

Ao Amigo John Lennon

Todo dia eu grito adeus ao espelho retrovisor. Para me arrepender em seguida e morrer de tédio gargarejando cepacol.

Mania de Malásia

Na ponta direita da Ásia, joga um nome que se chama Malásia.
Levanta pra ninguém cabecear.
Escorrega e o juiz não apita.
Soluça e não sorri.

Some no mapa. Aplaca. Amassa.
Atraca no porto inseguro do Oceano Índico
que não aponta o revés da vida.

Todos os seus pecados
são capitais do petróleo oriental.

22.8.05

Realidade

A ética na política
é escovar os dentes
todo dia.

20.8.05

O dormir da deusa

São dez da noite e aquela beleza para a qual me prostro num misto de contrição, devoção e paixão, já repousa. Descansa. Olho para ela e fico imaginando esse milagre dos olhos verdes que continuam lindos mesmo quando olham para dentro.

Ela me aguarda no travesseiro que dividimos.

19.8.05

Não

Por engano.

Trevo de quatro folhas

Humanidade não é poesia. Humanização também não. Ao negarmos os direitos básicos aos criminosos, ao sermos intolerantes com eles, estamos negando a nossa própria civilidade e a capacidade compensatória que nosso cérebro tem. Estamos negando a capacidade humana de associar a pena ao ato, pois que reduzindo o contra-ato ao ato.

Veredicto Irrevogável

A esperança é sempre a última que morre, assassinada com três tiros no coração.

Às pessoas

Fiquei observando as pessoas por horas e horas. Era estranho reconhecer nelas rituais antigos e não-concernentes à realidade hodierna.

Pareciam animais selvagens.

No acasalamento, dançavam estranhamente ao redor dos parceiros em potencial.

Na fome, corriam abruptamente procurando um lugar à mesa.

No sono, chatamente recorriam ao relógio para justificarem a vontade súbita de ir para casa.

Pareciam animais selvagens.

Eu sempre me arrependo de observar as pessoas por horas e horas.

Pessoas Normais

Pessoas normais: não tenho saudades de quando era possível encontrá-las pelas ruas.

18.8.05

Seu sonho

Um navio com cinco rodinhas e a gente dentro girando de tanto enjôo de tanto mar de tanta maré. Um tiro fura o casco:

- Cacete! Afundaremos no Juquiri!

Neve. Salva-nos porque congela todo asfalto e, enquanto o sol não derreter tudo outra vez, não seremos náufragos do solo.

- Um mais dois são três?

Um navio com cinco rodinhas e um cavalo puxando-o com todo o peso e nada a pressa. Um tiro a tirar do sério. Eu, armado, pronto para defender as meninas:

- Este mundo está carecendo de heróis!

Fugi para os quadrinhos.

17.8.05

mais triste que ser lua é ser loser minguante.

16.8.05

Treco

Nem tudo o que cai da ponte tropeça na borda. Há as fezes dos pássaros, há os pingos de chuva, há as folhas que o vento carrega. Nem tudo o que cai é volitivo.

Trecho # -5

Pisou na Lua em 1969, vestindo pesadas roupas que flutuavam. Retornou com a boca ressequida pelo trauma do sabor cumprido e a ressaca do prazer experimentado. Era uma bela história, que certamente seria compartilhada, contada e recontada a seus filhos, netos, bisnetos... Se herdeiros ela legasse ao mundo.

15.8.05

Trecho

Em seu primeiro emprego ela era bailarina de enfeite. Ficava na mesa do chefe e dançava quando ele ligava a caixinha de música. Ele sonhava com ela. Ele não sabia que ela era só do Morte. Ele não sabia que ela teria o Morte como revés, como companheiro, como indissolúvel, como alma gêmea, por toda a eternidade. Ele não sabia que amar era esse se completar onde um só é possível sendo dois.

Ela gostava de cozinhar mas nunca sabia direito a porção de água pra cada naco de arroz, ou o inverso, ou o desverso. Recitava versos sobre as panelas, como se as rimas fossem de feitiçaria. O marido não dizia nada, fingia que acreditava. No fundo compreendia a essência de ser marido.

13.8.05

Assunto Estranho

Acordei com uma plantação de balões vermelhos na cabeça. Cheios de hélio.

- Upa!

- Opa!

- Epa!

É como se o ar trafegasse dentro de cada conexão cerebral. Os pensamentos levitam sem a menor graça. A vida pára. O resto finge que flui.

De repente, não mais que de repente, todos os sonhos que estavam no bolso caem e eram vidro e se quebraram.

Estepe

Assombrado que nem um pivete fugido, Deodoro passa noites em claro sorrindo pra lua. Ele sorri de cá e ela de lá. Deodoro pensa que um dia vai ser ao contrário e só essa esperança é que o põe em pé.

Deodoro é um homem feliz.

Porque eu não acredito.

12.8.05

Olhos verdes da cor do céu

Na Malásia todos os gatos são poucos. Depois da minha-noite, quando o daltonismo é um elogio falso às pretensões de antemão.

- Corre, corre, corre!

Lá está o maratonista fugindo de três tigres nada tristes...

Na Malásia todos os sonhos se escondem no travesseiro.

Atualização Automática

O revólver está sempre à mesa, pronto para ser disparado. Tem sono, sede, fome, vontades. Que não se saciam.

Com um esparadrapo na testa, ele não dá a entender que já está enferrujado e pronto para matar todas as pessoas chatas e sem estômago. Sem coração.

Vou escorrer.

Quem sabe nalgum lugar clandestino ainda se fabriquem sonhos de bolso.

Quem sabe ainda dê para estourar bolhas de sábado.

Quem sabe eu caia em pé num domingo de sol.

Devaneios a partir de um aquário

Desde pequeno monto aquários para criar mundinhos. Mudo as pedras de lugar, boto plantas, cego o fundo... Em suma: sou Deus, perdido espaço-temporalmente.

10.8.05

Por que eu tive as pernas quebradas ao meio

Coincidência ou não, dia desses reli um velho conto do Stanislaw e ri muito. Da minha obviedade e da pobreza da vida, esta ridícula em estado literal.

...aliás!

às vezes o silêncio é o resumo da dor

silêncio

[ ]

9.8.05

Fetiche (mais sobre os sonhos que jamais se cumprem)

Custei muito a compreender que Deus era um joão-de-barro que se dedicava o dia todo à procrastinação dos sonhos. Com seu bico, novos adões projetados resmungam indefesos, mas os murmúrios se quedam mudos.

No dia em que acordei soberano, sofri as dilacerações da amálgama fraqueza de ser humano.
A Fórmula-1 petrolifica o tsunami tangencial:
- Urra, urra!, gritam os soldados de dentro de seus uniformes
E com a batuta na mão, regem a orquestra de lumpures adestrados
que falam inglês.

8.8.05

Sonhos de bolso

Do alto de seu poder em praça, o baixo executivo ordenou uma nova edição de sonhos de bolso, agora com menos páginas que é pra desilusão começar mais cedo.

Súbito, o empregado-mor murmurou:

- Mas como, se não temos peças de reposição?

Ninguém lhe deu ouvidos. A dor usa óculos mas não tem ouvidos.

Fim de um sonho

Na geladeira tinha um cubo que não estava frio. Peguei-o com as duas mãos entreabertas e fitei-o com os olhos castanhos fedendo à fumaça. Dobrei-o. Guardei no bolso.

Todo dia era assim que funcionava: o sonho morava no bolso, mas já havia há oito anos, era um sonho embolorado, musgo, sabão.

Num belo domingo, escafedeu-se como uma bolha de sábado virada no avesso pelo vento.

5.8.05

E pronto e acabou.

Jabutilândia #3

Hoje à noite duas estrelas irão brilhar dentro de seus olhos verdes, em momentos de profunda simbiose. Os suores serão apenas o resultado das sensações ímpares que o ínterim produz. A saliva. O sentimento. Os segredos à meia-luz.

Na clarabóia do céu, também confundida como lua, um guardião vai sorrir.

4.8.05

Lua

Com a lua indígena desenhada em seu nome, ela não sabe se aniversário são parabéns ou pêsames. Afinal, é a história do copo metade cheio metade vazio. Se bem que, no caso, ainda se está bem longe da metade.

O Dia "A". Ela não tem um fusca, não nasceu em 1929, não dobrou a esquina com suas próprias mãos e jamais votou em nenhum presidente norte-americano. O Dia "A". E as confusões são só reflexo de uma tensão pré que é plurianual.

3.8.05

Duro de Roer

Para não tropeçar nos nadas, gosto de andar em linha reta
como se o viver fosse um algoritmo
ou algo assim;
como se os tudos fossem de alfenim.

Em meus percursos, dispenso retrovisor
porque prefiro alçar os pretos vãos da imaginação
a ficar no lencinho branco
feito rabo abanado
dos adeuses.

Quando seus olhos rutilam em forma de meia-lua,
eu entendo que na varanda há uma flor
e na flor uma abelha virgem
carregando um sonho que nem começou:
- É preciso rediviver as vitrinas!

2.8.05

Jabutilândia #2

Nos espaços vazios sempre há um soluço em branco, pronto para acontecer de supetão. Respira.

Era dia de semana como outro qualquer, diferença é que o céu estava verde como uma uva verde. Do mesmo tom, só um pouco mais rutilante, no jeito para ser colhido pela raposa. Debaixo da parreira, uma velhinha tricotava ouvindo Pink Floyd.

Interrompemos nossa programação para anunciar os novos convocados para a seleção brasileira de futebol. É o escrete nacional pronto para mais um desafio: o amistoso da vez é contra a Croácia!"

Voltando, a velhinha tricotava ouvindo Pink Floyd. E eu, munido de binóculos mágicos, enxergava todas as formigas diuturnamente carregando folhinhas sob a atmosfera.

Uia.

1.8.05

Quando 999 é mais importante do que 1.000

Jabutilândia

Para encontrar Jabutilândia só é preciso abrir um mapa-múndi. Nem precisa ser dos mais recentes, pode ser um daqueles que têm U.R.S.S. bem grandona e Iugoslávia e Tchecoslováquia e outras coisas mais. Não, não precisa ter o estado de Tocantins.

Jabutilândia é minha Passárgada, onde tem tudo, só não tem civilização.

Jabutilândia é uma lembrança boa, guardada no começo de meu namoro.

Jabutilândia é pra onde eu quero ir quando crescer, ainda que lá quase toda a população seja analfabeta e eu não possa, portanto, viver do jornalismo.

Jabutilândia é pra onde a Tar foi quando partiu desta.