27.7.06

Imbróglio e Embrulho

Um dia, ou uma noite, não sei ao certo porque não vi, estavam todos os nove gnomos cor-de-abóbora deitados ao sol do meio-dia, ou à lua da meia-noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, e eles diziam sem parar bom dia, ou boa noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, e começaram todos a tentar esquecer a pequenez daquele dia, ou daquela noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, fonte confiável, só que não é nada fácil conseguir esquecer todo um dia, ou uma noite, não sei ao certo porque não vi, me contaram, mas eu dou fé, fonte confiável, não tem nem como contestar.

26.7.06

AmorCego

Feito sonar detecta tudo que é tátil de se pegar, tocar, apalpar, acariciar. Maior cego, refestela suas asas pelas brasas vermelhas de paixão: o que é uma coisa bela? Na escuridão latente, na lua cheia da gente, vampiriza-se e suga o sangue vermelho do pescoço sensual da moça que dorme tranqüila e sonha sonhos de amor na cama. Morcego:

- Não nego, carrego em mim a amálgama dor de ver verter sangue e ter prazer por cada gota que me sacia. O cálice sagrado. Meu segredo lhe agrada?

Agride. O sorriso matreiro da moça que revelava um sonho prestes a se converter em orgasmo vira um gemido, um ai, e agora o pesadelo é que ela é atracada contra a vontade. Saudade do instante imediatamente anterior. Alguma algema a ata à cama?

Morcego cabisbaixo. Morcego de cabeça pra baixo. Dependurado no teto, fino-trato, parece que traja um fraque suíço. Saboreia o sangue que escorre pelo canto da boca, saliva enquanto contempla a bela moça dormindo semi-transparente. Obra cumprida, só a marca dos dentes em seu pescoço. Vampiro:

- Firo a essência da vida porque persigo a alma. O sangue, organismo, não passa de adorno à minha missão. Uma hora eu consigo provar a todos, provando sangue visceral, vermelho, fogo, onde está o prazer.

Vermelho. O horizonte, vermelhando, anuncia o nascer de novo dia. Hora de ir embora, abrir as asas, dar adeus ao nada-testemunha. Amor cego é morcego: mama e voa.

17.7.06

Sua expectativa, meu expectorante

Quando chegar em casa, a porta entreaberta e os livros saqueados, não se esqueça de apagar a luz, para não dar na vista. É preciso avisar os vizinhos que estamos fugindo, a fim de evitar alarde maior, polícia nas costas, fotografia em jornal, mãe e pai chorando. Durante o percurso, economizemos os beijos. Os suores, deixemos para depois.

- Quantos passos ainda faltam?

- Não sei nada de contagem regressiva.

Eu olho para o relógio, os ponteiros me atordoam de fome. Lógica, religião, azulejos, aleijados, corante vermelho pintando o saguão. Você perdida, que nem nós dois.

- Quantos passos já fomos?

- Mais do que posso. Menos do que piso. O mesmo que passamos.

A sirene apita e nos lembra o que somos. Sequer torcida vale a pena se o único nó que precisamos não contém glúten. Só um gosto de sacolejo e um sentimento de escuridão. Gases por toda a parte anunciam a morte que foi ontem, anteontem, semana passada. Por instantes, sinto que pertencemos a um mundo extraordinário de canção, tédio, fantasia, fogo e lágrimas.

Carrego três cebolas cruas no bolso para que, alimentados, halitemos mal. Você traz a mala, onde estão roupas sujas, esperança e pavor. Voltemos à realidade que o trabalho nos espera nos classificados do Estadão.